Cultura será, talvez, uma das palavras mais complexas de definir. Pode ter o significado de usos e costumes, formas de expressão artística, produção tecnológica, herança comum e património, saberes produzidos por um determinado grupo, modos de uma determinada civilização, região ou localidade, e conhecer ainda outras particularidades quando se considera a sua divisão em cultura material ou cultura simbólica.
Ousaria tentar fazer uma aproximação à cultura por via da etimologia, no sentido de lançar algumas pistas para o debate/conversa de hoje. Cultura tem origem no latim colo. Vem de eu cultivo ou, mais especificamente, eu cultivo o solo. Depois comporta a desinência -ura, que designa uma ideia de futuro, de projecto, de acção. Aquilo que deve ser cultivado. De certa maneira, a cultura é então o solo ou campo que vai ser trabalhado.
Há, deste modo, na Roma Antiga, uma ligação muito particular da cultura aos conceitos de trabalho, produção, acção sobre o pré-existente, sobre a natureza, dando vida ao que é inerte, moldando e transformando à medida do que é humano.
Com o aprofundamento dos contactos entre Roma e a Grécia Antiga, há uma troca, diríamos, cultural (entre outras), que vem complexificar e adensar o termo e o conceito de cultura. Ora, de acordo com alguns investigadores e linguistas, na Grécia havia uma palavra que não conhecia tradução directa para o latim que era Paideia. Esta palavra definia um conjunto de conhecimentos que deveriam ser transmitidos à criança ou, em grego, paidós. Daqui decorrerá palavra nossa conhecida: pedagogia.
Aparentemente, terá havido alguma resistência à adopção da palavra estrangeira paideia, pelo que este conceito de conjunto de conhecimento a transmitir aos vindouros terá acabado por ficar incluída na palavra cultura, conferindo-lhe, deste modo, outras dimensões: simbólica, conceptual, abstracta, herança, transmissão.
É um encontro feliz entre o singular, o individual do “eu cultivo”, com o colectivo da comunicação de um conjunto de ideias da Paideia. Entre a materialidade do solo, do campo agrícola, e do campo intelectual do conhecimento. Entre o processo de produção decorrente da acção de cultivar, de trabalhar, e a organização criativa e lógica do pensamento. E é a soma da desinência de futuro com o futuro que é a criança.
A partir daqui, temos de baralhar e dar de novo.
O esforço de compreender o que é cultura é importante face ao cenário de ambiguidade em que nos encontramos no quadro do capitalismo, em que a ideologia neo-liberal se esforça por manter a cultura desligada e desarticulada do processo histórico e, sobretudo, da perspectiva de transformação revolucionária da sociedade.
Há uma banalização e um esvaziamento do conceito de Cultura, tentando que seja apartada das relações sociais de produção e do trabalho – e, portanto, da luta de classes.
Fará sentido talvez ir repescar uma curiosa frase de Karl Marx que fala de abelhas e de arquitectos:
[…] Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao ser humano. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquitecto humano com a construção dos favos das suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquitecto da melhor abelha é que ele construiu o favo na sua cabeça, antes de o construir em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que, já no início, existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele não efectua apenas uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural o seu objectivo.
Ora, esta descrição pode remeter-nos também para os trabalhos de investigação soviéticos no campo da sociologia e da psicologia social, bem como da história e da arqueologia, que ligam o aparecimento do ser humano, enquanto sapiens (sapiens) à específica altura em que reúne finalmente os atributos biológicos necessários ao seu desenvolvimento sócio-histórico ilimitado. É nesta altura que passa a existir a cultura que, enquanto produto do trabalho, diferencia o ser humano de outros seres vivos. E vai reflectir-se em duas dimensões interligadas: a cultura material e a cultura intelectual.
É também aqui que a coisa se torna perigosa, principalmente, quando desdobramos tudo isto numa noção de trabalho, de encontro colectivo, de transmissão, de organização. Assim, no quadro da ofensiva neo-liberal, torna-se mais fácil perceber o ataque à cultura e de caracterizar o actual contexto nesta matéria.
Deste modo, vivemos um momento de grande empobrecimento cultural e, consequentemente, de esvaziamento democrático, com um grande ataque à diversidade. No nosso país, esta situação choca de frente com os avanços e conquistas saídos da revolução de Abril de 1974 e à perspectiva de democratização cultural que consagrou, designadamente, na Constituição da República Portuguesa. Ficou inscrito no texto constitucional o direito de todos ao acesso à Cultura, à fruição e criação culturais.
Só que décadas de política de direita de sucessivos governos contrariaram e bloquearam o imenso potencial transformador que o 25 de Abril comportava. Há uma flagrante opção pela elitização da cultura, sobretudo da erudita (mas não só), no quadro do exercício das relações de poder e enquanto valor simbólico e expressão do próprio domínio de classe.
Por outro lado, ocorre um fenómeno de massificação da cultura, ligada à globalização capitalista, à maximização do mercado e à livre circulação de bens, em que a cultura deixa de ter valor próprio e passa a estar situada no contexto do chamado consumo de bens culturais. É aqui que entram, na perfeição, as propaladas indústrias culturais e de entretenimento. Tudo se transforma num mero bem de consumo, numa nova necessidade, numa nova moda de algo que se tem de ter. Cria-se uma falsa ideia de liberdade. De liberdade de escolha dos produtos culturais, que são comprados por quem pode e escolhidos por quem vende.
Liberdade? Nada mais falso. Porque o neo-liberalismo não quer a emancipação individual e colectiva da humanidade, ao contrário da perspectiva libertadora da revolução russa que deu origem à União Soviética. Porque liberdade implicaria uma série de outras coisas que extravasam o campo específico da cultura. Como salários dignos, horários de trabalho regulados, tempo para o lazer. E daí a actualidade do direito aos três oitos: oito horas para trabalhar, oito horas para descansar e oito horas para o trabalhador usar como entender, no lazer ou no ócio. Mas é também ter um verdadeiro acesso a toda a Cultura. Daí serem importantes propostas como as que o PCP tem apresentado, propondo o alargamento da gratuitidade dos museus e monumentos, da baixa do IVA dos instrumentos, da existência de bolsas de criação literárias, do reforço da verba para os apoios públicos às artes. Não só para a fruição, mas também para a criação cultural. Para que todos tenham acesso a toda a cultura.
No quadro actual, a cultura tem ainda importante papel no campo da batalha das ideias, constituindo-se como uma ferramenta de domínio e reprodução da ideologia neo-liberal e da perpetuação do capitalismo. Vêmo-lo com clareza naquilo que é feito ao nível da comunicação social e das indústrias do entretenimento e do audiovisual. Na forma como determinados conceitos são repetidos à exaustão e no modo em como são inseridos determinados vocábulos nas nossas cabeças. Como resistência foi subitamente substituída por resiliência. Como, de repente, a sustentabilidade passou a estar em todo o lado.
É por isso que é tão importante a proposta alternativa do PCP e a luta de todos em defesa de toda a cultura, pelo direito à livre criação e fruição culturais.