A memória da Revolução bolchevique de 1917 é vivida de forma muito diferente, um pouco por todo o mundo, mas especialmente na Europa, desde o fim da União Soviética em 1991. O seu significado político e a sua capacidade mobilizadora, como acontece com todas as manifestações de memória coletiva, depende do contexto em que ela emerge. Já o era assim antes de 1989-91, era inevitável que assim fosse depois. Essa memória contamina todo o discurso político sobre o comunismo e o socialismo e, sobretudo, sobre o valor do conceito de revolução e a própria viabilidade histórica da sua ocorrência no presente e na nossa imaginação do futuro.
Assim, se na Europa Centro-Oriental os processos transicionais pós-comunistas tẽm implicado predominantemente a criminalização legal do comunismo como “ideologia totalitária”, acompahada da ilegalização de partidos que se reivindicam desta ideologia (Polónia, Hungria, repúblicas bálticas, Ucrânia, …), ou a adoção institucional de políticas da memória baseadas na equiparação Comunismo=Nazismo, na Europa Ocidental, perante a autodissolução e/ou refluxo sociopolítico dos partidos comunistas, coexistem perceções muito contraditórias, e claramente manipuladas, da fragilidade/irrelevância do comunismo e dos comunistas como opção política, por um lado, e da permanência do perigo comunista, da imutabilidade da esquerda comunista, por outro, discurso que surge sempre que os partidos comunistas mostram a sua capacidade de articular fortes movimentos sociais e de formar opinião nas classes populares.
A partir da viragem do séc. XX para o séc. XXI, as linhas de força da leitura anticomunista tendem a reproduzir a velha tese dos anos do pós-Revolução Russa que descrevia os comunistas como uma minoria alheia à identidade "nacional", ou àquela que é assumida como sendo maioritária em cada sociedade, portadores de uma cultura inassimilável/inconciliável. Desde os anos 60, mas particularmente, uma vez mais, desde 1989-91, as elites que gerem o neocapitalismo da chamada globalização gostam de descrever os comunistas e os partidos em que militam descritos como produto do subdesenvolvimento das sociedades em que operam. Berlusconi ou Órban, Trump ou os fazedores de opinião liberais, o discurso hegemónico dos media, quer no Ocidente euroamericano, quer em grande parte das sociedades maioritariamente muçulmanas da África e Ásia, pretendem impor a tese de que o comunismo é uma ideologia criminosa do passado, inaplicável no séc. XXI, mas persistentemente perigosa.
E por algum motivo o fazem...
*Este texto corresponde às principais ideias constantes na intervenção de Manuel Loff, podendo não corresponder textualmente à intervenção proferida e disponibilizada em formato audio.