A ideologia burguesa é a ideologia da burguesia. Dizer isto não é uma banalidade sem consequências ou uma mera tautologia. É que uma das características básicas da ideologia burguesa consiste em recusar que seja uma ideologia e que seja referida a um sujeito social preciso, a burguesia. Assim, a maior parte das vezes, a ideologia burguesa tenta fazer-se passar por uma espécie de senso comum, ou por uma difusa doxa, uma espécie de “opinião pública” que atravessasse as fronteiras entre as diferentes classes. Todas essas formas de se considerar a si mesma, comportam gestos que visam recusar e dificultar a sua percepção como ideologia, ou seja, como um conjunto de representações, imagens do mundo e valores que exprimem os interesses e as necessidades de reprodução das condições de existência de uma determinada classe social.
Uma outra das suas características básicas que visa também dificultar a sua percepção como ideologia que representa os interesses, os desejos e os fantasmas de uma classe social, manifesta-se no seu carácter intensamente contraditório, flexível, destinado a adaptar-se a um número extensível de conjunturas e a diferentes funções-sujeito.
Sendo social e colectivamente produzida, a ideologia burguesa funciona como uma banca onde se vão buscar estruturas pré-fabricadas de sentidos que asseguram aos indivíduos uma estruturação e uma afirmação de si próprio como sujeito. Podemos dizer que o indivíduo abstracto burguês é um produto das relações de produção capitalistas e da ideologia burguesa que se apresenta como um pensamento que seria uma função de tal sujeito. Ou seja, a ideologia burguesa constitui um sujeito ilusoriamente criador de um pensamento, que é de facto fabricado algures. A essência agressiva da ideologia burguesa tem no seu coração o anticomunismo.
A grande Revolução Socialista de Outubro é a primeira revolução operária vencedora e constitui por isso a demonstração prática, e na história, da necessidade e da possibilidade da revolução. A necessidade da revolução de Outubro é a necessidade de resolver ou superar revolucionariamente o feixe de contradições que caracteriza qualquer sociedade capitalista. Por outro lado a possibilidade de uma tal revolução torna-se evidente e investigável face aos acontecimentos históricos que marcam a Comuna de Paris e que ligam essa experiência à da revolução de Outubro.
Marx e Engels utilizam a palavra ideologia em duas acepções: a restrita e a geral.” (João Vasco Fagundes, «Fragmentos sobre ideologia, de Vasco Magalhães-Vilhena: Alguns Tópicos para Reflexão, O Militante, nº 344, p.47).
“Aquilo que é criticado na ideologia dos jovens hegelianos, não é o poder de idealização, não é o caracter ideal das ideias, as ideias não são criticadas por serem ideias. Aquilo que é criticado nos jovens hegelianos, sobre a designação de ideologia, é o idealismo que comanda as suas concepções, é a autonomia absoluta que eles conferem às ideias, é a desconsideração da génese e do vínculo objectivo das ideias com a realidade e a prática social que a transforma; é, no fundo, a atribuição às ideias do estatuto de fundamento da realidade, levando a que as relações entre o ser social e consciência social surjam invertidas, assim como invertidas surgem a relações entre, por exemplo, base e superestrutura e entre valor e preço. (…)
Como afirma Vasco Magalhães-Vilhena: “ideológico” é penas uma outra palavra para idealista”. Vasco Magalhães-Vilhena, Fragmentos sobre a Ideologia (idem 36, p.50).
“Na sua acepção geral, a ideologia traduz, para Marx e para Engels, o conjunto das formas da consciência social, que se ergue sobre uma base social dada, o acervo das representações sociais, dos objectivos, desígnios, ideias, opiniões, e formas de sentir disponíveis, a cada momento na sociedade.
A este título, a categoria histórico-filosófica de ideologia significa concepção geral do mundo e da vida que, simultaneamente, reflete a marca social da sua origem, e projecta eixos de actuação prática sobre a realidade. (João Vasco Fagundes, idem, p.48-49)
A revolução de 1917, situando-se embora na continuidade da Comuna de Paris, implica alguns traços inovadores onde podemos ter em conta as diferenças entre essa tradição e o modo como deles se pode extrair a possibilidade efectiva da revolução.
O anticomunismo é uma das formações da ideologia burguesa de conteúdo mais virulento e agressivo.
Porque o anticomunismo visa desacreditar a ideia de que uma revolução socialista é uma forma necessária e possível de resolver ou superar revolucionariamente o feixe de contradições que caracteriza qualquer sociedade capitalista.
A grande Revolução Socialista de Outubro é um acontecimento histórico que demonstra na prática a necessidade e a possibilidade dessa revolução. Situando-se no primeiro quartel do século XX, e sucedendo a uma série de insurreições operárias, em 1830, 1848 e 1871, passando pela experiência de 1905, na própria Rússia, a Revolução Socialista de Outubro estabelece uma linha de continuidade com aquelas rebeliões operárias nas quais introduz características inovadoras que certamente justificam o facto de esta ser a primeira revolução que vence.
Lenine propõe ao congresso do Partido Operário Social Democrata Russo (bolchevique) de 1918, que o partido passe a designar-se Partido Comunista, homenageando assim os militantes operários da Comuna de Paris. Reclamando-se assim de uma continuidade com anteriores insurreições operárias, o Partido inscreve na sua adaptação programática alguns traços inovadores que poderão ter contribuído para a vitória da Revolução de Outubro.
O anticomunismo, enquanto arma fundamental da ideologia burguesa, indica a direcção e a orientação fundamental da sua estratégia de mistificação. Os seus diferentes temas visam assegurar a “invisibilidade” dos comunistas ou da alternativa comunista. Por isso, um dos eixos fundamentais do seu comportamento é o sistemático, prolongado e implacável silenciamento da sua voz, das suas propostas, da sua história, indiscernível da história, dos últimos 150 anos, em particular, dos povos. O mesmo se passa em Portugal.
O silenciamento do PCP é assumido por um discurso que atribui ao excluído a responsabilidade por aquilo que é assim apresentado como a sua autoexclusão. É o que o próprio PCP é, aquilo porque tem combatido e combate, que é a razão da sua (auto)exclusão. A exclusão do PCP é, por outro lado, “justificada” porque o PCP “está fechado à realidade”. A credibilização desta ideia passa por uma manipulação completa da realidade. Assim, o PCP não aparece na realidade portuguesa porque dela foi previamente retirado. A televisão não concede a palavra ao PCP, ignora iniciativas, grandes reuniões, debates de propostas para os problemas do país, lutas um pouco por todo o território nacional e em variadíssimos sectores da vida nacional, e depois conclui que o PCP está calado, não tem opinião ou a sua opinião não é visível. Nos debates sobre os grandes temas económicos, políticos e sociais, frequentemente não há comunistas. O argumento, que podem explicitar, ou deixar que as pessoas o infiram: é o de que não há comunistas que sejam especialistas dessa matéria, ou que tenham ideias interessantes sobre aquela outra matéria. Isto torna-se mais escandaloso quando o tema parece trazer consigo os comunistas, os trabalhadores, a sua luta. Suponhamos uma luta de empresa ou a luta num sector profissional. Se é demasiado escandaloso não convidar nenhum representante dos trabalhadores, da CGTP ou dos comunistas, a dificuldade pode ser contornada convidando a participar um elemento da UGT, mesmo que nada efectivamente represente nessa luta ou nesse sector de actividade, ou um especialista universitário de “sociologia do trabalho” que represente os interesses patronais.
A manipulação da realidade, a fabricação do consenso e a imposição da obediência
A televisão e os media em geral apresentam as medidas que o governo (seja ele um qualquer governo que conduza uma política de direita) vem tomando como inevitáveis. Esta é uma das características que identificam a política de direita: a inevitabilidade é uma espécie de deus ex maquina que governa a situação política, social e económica portuguesa. A tentativa de convencer dessa inevitabilidade representa uma activa imposição da obediência, baseada na generalização de um falso consenso, que é sobretudo a obtenção, pela violência psicossocial e pela aculturação, de uma disposição para o consentimento. Esse consenso manipulado que se visa impor é também a partilha de uma outra ideia que não precisa de ser explicitada para ficar a pairar suspensa, ao nível sub-consciente dos espectadores, mas sempre que necessário pronta a ser reactivada, segundo a qual o capitalismo é a realidade, a ordem natural das coisas; e a realidade é um dado intransponível, imóvel e intransformável, contra o qual nada se pode fazer. O PCP, ao não aceitar esta realidade que representaria o final da evolução histórica [houve história mas já não há – é o máximo de flexibilidade consentida] mostra assim estar fora da realidade.
A “realidade” é configurada pelos grandes meios audiovisuais de forma intensamente mistificadora. Desde os programas de informação ao conjunto da programação; tudo trabalha para impôr uma noção de realidade.
A realidade é algo de inteiramente visível: é algo que se vê completamente, no ecrã de televisão, que mostra o que se passa (presente), ou o que se passou, (passado) e se pode passar (futuro).
Telenovelas, noticiários, diversos tipos de talk-shows, concursos, documentários, séries, filmes, tudo se homogeneíza num discurso uniforme e absolutamente dominante, que absorve qualquer reparo crítico, que tende a impor modelos de reconhecimento da realidade e padrões de comportamentos aceitáveis.
Toda a descrição da realidade é, neste quadro, subordinada à definição de objectivos a alcançar, num determinado momento. Os reality-shows, por exemplo, não se limitam a pôr ou a “dar” em espectáculo aquilo que é a realidade, mas constroem modelos de comportamento susceptíveis de serem reconhecidos e adoptados. As sondagens mais do que diagnósticos de um estado da opinião são construções tendentes a induzir determinados resultados. Os programas de entretenimento potenciam o que já é conhecido quanto aos valores e desejos maioritários e tendem a torná-los ainda mais maioritários.
É conhecido o fenómeno da espectacularização do político e da aplicação da lógica da publicidade comercial à propaganda política. São os efeitos de expansão de dois dos grandes valores da ideologia burguesa, que reflectem duas tendências do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo: a mercadoria – a tendência para a mercantilização de todas as relações sociais e humanas; e o espectáculo - a tendência para a espectacularização de todas as esferas da vida humana.
Estes dois valores e tendências exprimem a imposição de dois modelos da organização burguesa do viver social: o mercado, que tende a substituir o diálogo e o confronto no espaço público e o espectáculo, que impõe a distância e promove uma satisfação ilusória dos desejos dos cidadãos reduzidos de participantes a espectadores.
A ideologia burguesa, jogando com estes dois valores, acaba por confundir o funcionamento do mercado capitalista com o funcionamento da democracia e este com o da representação.
São várias as formulações produzidas sobretudo na área das relações internacionais onde os representantes do imperialismo e das potências capitalistas identificam, numa confusão deliberada, as sociedades democráticas como “sociedades de livre mercado”. Essa confusão é tal que, para a ideologia burguesa dizer que as sociedades democráticas são sociedades de mercado e estas são necessariamente sociedades democráticas é rigorosamente equivalente, embora essa equivalência possa ser empiricamente refutada.
Uma idolatria da representação
Por outro lado, pode dizer-se que a ideologia burguesa é uma idolatria da representação. A sua concepção da democracia tende a esgotar-se no mecanismo de representação, que introduz ou supõe uma separação inultrapassável entre representantes e representados. Essa separação traduz-se numa forte desigualdade na participação e exercício do poder. A maioria da população só pode ser representada, ou seja, a sua participação no poder limita-se à escolha de quem serão os seus representantes. A pressão das divisões sociais procede a uma evidente (e, contudo, silenciosa) selecção social dos representantes. Assim, os trabalhadores tendem a ser representados por indivíduos com outras origens e situações de classe.
É claro que as sociedades baseadas na exploração do trabalho e na opressão dos trabalhadores tudo fazem para autonomizarem a representação, da função pela qual ela é representação de outros. Assistimos então a uma manipulação da representação, de tal forma empreendida, que os representantes em vez de cuidarem da fidelidade àqueles que os escolheram para os representarem, constroem a representação como modelação retroactiva dos representados.
A representação pode então tornar-se um colossal embuste: os representantes escolhem e fabricam os conteúdos da representação; modelam e remodelam a vontade daqueles mesmos que os “escolheram” como seus representantes e que, nesse preciso momento, ficam sem efectiva representação.
A representação da realidade processa-se através de frases onde os verbos são dominantemente verbos de descrição. Entretanto esses textos, mais do que descrições de estados de coisas, são indicações de comportamentos e de gestos, de acções a serem desempenhadas pelos “parceiros” da comunicação.
“Os partidos são todos iguais”
Pode dizer-se que esta “fórmula”, embora parecendo corresponder à experiência real que os eleitores têm dos partidos burgueses e da mistificação que é a representação formal na democracia burguesa, é desviada desse terreno e é posta a funcionar fundamentalmente contra o PCP. Porque o PCP é o partido mais diferente, pela sua natureza de classe, pela teoria que o guia, pelos objectivos imediatos e finais que prossegue, pelas regras explícitas do seu funcionamento, o PCP deveria ser a opção eleitoral de inúmeros eleitores fartos de serem enganados pelos partidos em que têm votado. Entretanto a fórmula “são todos iguais” é usada particularmente por aqueles que, desesperados com o sistemático logro em que são levados a cair, não são ainda capazes de alterarem a sua opção de voto e votarem no PCP. A fórmula “são todos iguais” é assim uma espécie de seguro de vida para os partidos da política de direita que assim conseguem que os seus eleitores rigorosamente não vejam a diferença dos comunistas.