A questão da ofensiva ideológica na Educação é vasta e omnipresente. Existindo áreas do conhecimento cuja revisão mobiliza maiores esforços da ideologia dominante – como a História – as restantes não escapam a este processo de manipulação ideológica da produção de conhecimento e os seus frutos transformados em factos inquestionáveis.
Assentamos esta contribuição na análise de exemplares de manuais escolares e exames nacionais da disciplina de História do 9º e 12º ano e tivemos como ponto de partida a Revolução de Outubro. No entanto, pretende-se abordar a forma e os conteúdos leccionados sobre a União Soviética no geral, o 25 de Abril e o fascismo em Portugal e também reflectir sobre a tendência permanente de utilizar esta re-escrita da história para determinar o seu fim e perpetuar a mundividência e os valores do sistema actual.
Os manuais escolares são a concretização das várias revisões curriculares e dos conteúdos dos programas que, no essencial, adulteraram e subverteram o espírito da Constituição da República e da Lei de Bases do Sistema Educativo.
A Escola Pública foi diminuída no seu conteúdo democrático e progressista, valoriza-se uma visão elitista da Educação e em detrimento da formação integral do indivíduo como cidadão culto, crítico e interventivo na sociedade.
Equacionando apenas as opções metodológicas e de recurso a fontes se percebe que não se proporciona aos estudantes uma perspectiva complexa e fundamentada da história. Envoltos numa aura de factualidade apresentam-se como fontes primárias parangonas e títulos sensacionalistas de jornais. Muitas das fontes são enquadradas por opiniões, dos autores dos manuais, como o caso do cartaz da URSS sobre o qual se diz «Na propaganda, Estaline associa-se ao partido e a Lenine, mas, na prática, perseguiu muitos dos seguidores de Lenine e membros do partido que se lhe opuseram».
A Revolução de Outubro acaba por merecer referências breves, vagas e confusas. Por exemplo, afirma-se que «Em resposta [à criação do Exercito Branco], os bolcheviques organizaram um exército vermelho e instalou-se na Rússia uma guerra civil que levou ao assassinato brutal do czar e da sua família, à morte de milhares de russos e ao agravamento da situação económica do país.» Criam-se constantemente associações de causa-efeito bastante simplistas. Tal como no exame nacional em que devem ser apresentadas como provas do totalitarismo soviético o «esmagamento do Exército Branco» e a «dissolução da Assembleia Constituinte porque os bolcheviques não tinham a maioria.».
O período embrionário da Rússia revolucionária é desligado da guerra civil que foi travada e apelidado de «comunismo de guerra» As descrições do sistema político soviético demonstram uma total incapacidade de concepção de outros formatos que não o da democracia liberal e um acérrimo etnocentrismo. Fala-se da criação do partido único, «uma hierarquia paralela ao Estado e que o subordinava» onde os sovietes eram «simples elementos de transmissão entre as instâncias dirigentes do Partido e a população». Refere-se que tal seria «impensável no quadro do pluralismo partidário, à maneira ocidental, em que os diferentes grupos de opinião e ideologias têm direito à representação política.»
Mas a ideologia dominante dispara em todos os sentidos e por isso, quando se aborda a questão da Nova Política Económica o que se sublinha é a “prova” da falência do socialismo, devido a um «recuo estratégico ou adopção de medidas capitalistas e aparecimento de classes enriquecidas, contrário ao princípio da sociedade sem classes».
Esta demanda da descredibilização do comunismo é transversal e evidente, contrapondo-o à democracia, estratégia que utiliza tanto os princípios teóricos, apontando que o marxismo-leninismo recorre «à força e à violência na concretização da ditadura do proletariado.» como elementos concretos apontando o surgimento de «movimentos autoritários e antidemocráticos» face à oposição no seio da URSS, que a «ditadura do proletariado foi antes de mais a ditadura do Partido Comunista», ou como este «supostamente representa os interesses» da classe trabalhadora.
Não lhes sendo possível negar os avanços na indústria, na agricultura e no sistema financeiro em geral apontam-se imediatamente o «trabalho forçado, nacionalização da propriedade e exploração da população com pesados impostos» que lhe estariam na base. Chega-se ao absurdo de afirmar que «apesar dos sucessos obtidos ao nível da democratização do ensino, da gratuitidade dos serviços de saúde e do incremento cultural, ao nível económico o modelo estalinista fracassou os seus objectivos, se os compararmos com os resultados de outras economias (capitalistas)», usando como termo de comparação a posse de televisão, telefone, carro pelos habitantes.
Sobre a Segunda Guerra Mundial, a participação da URSS é reduzida à assinatura do pacto de não-agressão com a Alemanha, ao avanço de Hitler para leste em 1941 e à resistência soviética graças ao apoio dos aliados. O contributo soviético para a vitória sobre o nazi-fascismo é totalmente ignorado. Mas a ofensiva quanto ao conflito mundial vai mais longe, perpetuando uma imagem imaculada dos EUA, por exemplo quando é dito que «o lançamento de duas bombas atómicas conduz o Japão à rendição» valorizando, de facto, esse acto hediondo, mas omitindo a potência que as lançou, bem como o facto em nada irrelevante de que o Japão já se tinha demonstrado disponível para a rendição antes do seu lançamento. Muito presente é o objectivo da equiparação do fascismo ao comunismo, por intermédio do paralelo entre a URSS e o nazi-fascismo analogia que se estende e é transversal até à actualidade. . A URSS é apontada como “uma ditadura (…) que apesar de defensora de valores do comunismo, tinha métodos e princípios que a tornavam muito próxima das ditaduras fascistas».
O nazismo é reduzido à expressão de perseguição racista, sem qualquer referência às questões políticas e económicas associadas. . Já o fascismo Português e o Espanhol são retirados desta esfera de comparação justificando que «o termo fascismo designa também (…) mesmo simples regimes autoritários.»
Talvez seja esta dualidade de critérios e o branqueamento do fascismo em Portugal que afigura como mais gritante na questão da ofensiva ideológica. Um dos mitos mais repetidos é o do sucesso financeiro do país após entrada de Salazar no Governo como Ministro das Finanças sendo dito que «como as medidas que implementou nas Finanças estavam a dar bons resultados, conseguiu ser eleito chefe do Governo». Não existe qualquer referência aos cortes austeros, à acentuada pobreza do povo português ou ao volfrâmio vendido à Alemanha durante a guerra que desmente a pretensa «neutralidade de Portugal na Segunda Guerra Mundial» Chega-se mesmo a afirmar-se que «a censura aligeirou a sua intervenção no período pós-eleitoral. Em suma, o Estado Novo procurou demarcar-se dos regimes autoritários que tinham saído derrotados da Guerra».
No que concerne à oposição, o Partido Comunista Português prima pela ausência, de tal forma que surge como relevante mencionar que o Partido Comunista Chinês reuniu pela primeira vez em 1921, mas não a criação do PCP no mesmo ano, tanto que se aponta que a Revolução de Outubro traduziu «pouco impacto em Portugal, mas que as ideias socialistas começaram a surgir como solução». A resistência clandestina, presos políticos, propaganda, organização e luta do PCP são ignoradas. O Partido e o seu papel inquestionável no derrube do fascismo em Portugal é apagado ou desvalorizado.
O 25 de Abril é reduzido a um «golpe de estado, sem grande resistência por parte das tropas leais ao regime», escondendo o envolvimento das massas populares que assegurou a transformação do levantamento militar em acção revolucionária, sendo o processo revolucionário apresentado como um tempo em que «se procede a saneamentos sumários de quadros técnicos e outros funcionários considerados “de direita”(…)a Reforma Agrária toma feição extremista com a ocupação de grandes herdades pelos trabalhadores rurais(…). Este ambiente anárquico gerou um clima de opressão e medo nas classes médias e alta que impeliu milhares de portugueses a abandonarem o país». A revolução de Abril, momento fundamental da história do povo português é reduzida a um elemento transitório, os seus antecedentes e construtores esquecidos e desenhado como um degrau para o verdadeiro objectivo da ideologia dominante – a construção de uma democracia liberal. A queda da URSS é apresentada como prova da inevitabilidade da perpetuação do sistema capitalista. Sendo afirmado que «um pouco por todos os países de Leste foram derrubados os símbolos comunistas, instituíram-se regimes democráticos e foram introduzidos o capitalismo e a economia de mercado».», nessa tentativa mistificatória de confundir e amalgamar conceitos. A partir deste momento passa a ser apresentada como histórica a versão imperialista e dos EUA dos processos históricos dos povos, numa perspectiva de infantilização da lógica entre os “maus e os bons” da História, com recurso a uma linguagem simplista e que atinge facilmente o seu objectivo de demonização de todos aqueles que resistiram e resistem às pretensões hegemónicas do imperialismo.
No rol de questões sobre a actualidade está presente um alinhamento político com a presença de Portugal na UE e com os discursos dominantes quando se diz que apesar da crise e da intervenção do FMI «é um facto que a qualidade de vida dos portugueses aumentou muito desde 1986».
Em determinado exame nacional é mesmo requerida a enunciação de princípios positivos da UE, sendo alguns dos exemplos de resposta «o aprofundamento da democracia»ou «a recuperação do atraso nacional». A visão que se passa sobre a UE é que esta é fonte e garante de uma Europa de paz e progresso social económico, apagando a integração capitalista e as suas consequências para os povos. Os arautos do fim da História defendem que «nas actuais democracias ocidentais, os partidos são empresas ou aparelhos destinados à conquista do poder político. A ideologia cede lugar ao utilitarismo. A militância política converte-se em carreira» Isto esconde o propósito do ataque ao regime democrático, tanto pela descredibilização dos partidos ou a equiparação dos partidos sob o mote do “são todos iguais”.
Embora o cenário da ofensiva ideológica na educação e nos manuais escolares seja grave e inaceitável, não nos desmotiva. Está nas nossas mãos denunciar estes ataques e o revisionismo histórico. Cabe-nos enquanto comunistas agitar as mentes fomentar o estudo e o debate, persistir no indelével contributo que damos diariamente pela nossa acção ao desenvolvimento da luta, que dialeticamente permite garantir que não se perde a memória colectiva e fomentando como prática diária o sentido crítico sobre o passado e o presente.