centenario | Causas e Consequências

Intervenção de José Capucho

Membro da Comissão Política e do Secretariado do CC do PCP

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Intervenção de José Capucho

O processo de construção do socialismo na URSS e noutros países socialistas ficará para sempre na história como grande experiência e avanço na luta libertadora dos trabalhadores e dos povos.

O percurso de 74 anos da construção do socialismo marcou o século XX com grandes realizações económicas, sociais, políticas, culturais e científicas. Podendo mesmo afirmar-se que todos os avanços ocorridos nesse período têm nos seus ideais e na sua experiência concreta, a sua matriz principal.

Em sentido contrário, o desaparecimento da URSS e as derrotas do socialismo nos países do leste da Europa no final do século passado mostra de forma cada vez mais evidente, que constituiu um verdadeiro retrocesso civilizacional com um inquestionável impacto negativo na correlação de forças a nível mundial em favor do imperialismo.

A marcha da humanidade sofreu uma tremenda regressão, com consequências trágicas quer para os povos da URSS e dos países socialistas, quer para os povos e países de todo o mundo.

É dado adquirido, e mantêm toda a actualidade e valor, as análises e conclusões dos XIII, XIV e XVIII Congressos do PCP, sobre as causas que levaram à derrocada da União Soviética e às derrotas do socialismo.

Houve um vasto e complexo conjunto de factores que conduziram às derrotas sofridas. Um “modelo” que acabou por instaurar-se na URSS em resultado do progressivo afastamento dos ideais, valores e objectivos essenciais de uma sociedade socialista sempre assumidos pelos comunistas.

Para além da consideração de factores externos, da persistente, permanente e intensa ofensiva do capitalismo internacional, desde a militar à económica, a Revolução teve de enfrentar, logo desde Outubro de 1917, um conjunto de dificuldades internas resultantes nomeadamente de bloqueios e sabotagem económicos, guerra civil, traições. E também por se tratar de um processo pioneiro de transformação social que teve de encontrar respostas a situações complexas que se colocaram à construção da nova sociedade.

A evolução negativa que se deu na União Soviética e o afastamento dos ideais comunistas, exigia a necessidade de uma viragem, a necessidade de mais democracia como elemento para o reforço do socialismo.

Os acontecimentos na União Soviética e noutros países socialistas do leste da Europa propiciam aos detractores do socialismo e dos ideais comunistas, a acusação de que esses acontecimentos, esses regimes e o seu fracasso revelam, traduzem, segundo eles, a verdadeira natureza e a condenável experiência do ideal e da luta dos comunistas.

Mas o exame sério desses acontecimentos e das derrotas do socialismo verificadas, devem-se não à concretização dos ideais da Revolução de Outubro mas, pelo contrário, a orientações, soluções e práticas que se afastaram dos ideais comunistas em aspectos essenciais.

No decurso do processo de construção da nova sociedade, o poder político dos trabalhadores, o poder popular, foi sendo substituído por um poder político fortemente centralizado, cada vez mais afastado da opinião e da vontade expressa das massas.

A democracia política, o poder dos sovietes, nova forma de democracia amplamente participativa, deu lugar à acentuação do carácter repressivo do Estado e a infracção à legalidade.

O desenvolvimento económico acabou por ser entravado por uma economia excessivamente centralizada a par da desincentivação do empenho e da produtividade dos trabalhadores.

O papel dirigente e de vanguarda do Partido deu lugar a uma direcção centralizadora e burocratizada. Ao afastamento dos trabalhadores e das massas populares e a práticas de imposição administrativa das decisões, tanto do Partido como do Estado, agravadas pela fusão e confusão das funções do Partido e do Estado.

A teoria marxista-leninista, teoria viva, em movimento, instrumento para responder às novas situações e aos novos fenómenos foi dogmatizada e imposta como doutrina do Estado, substituindo respostas criativas, por citações de textos teóricos cristalizados. E, na evolução dos acontecimentos, um princípio essencial do ideal comunista acabou por ser esquecido – que uma sociedade socialista só pode ser construída pela acção revolucionária e com o empenho dos trabalhadores e das massas populares, nunca sem o seu empenhamento e muito menos contra a sua vontade.

Tratou-se de facto de um “modelo” que se afastou em aspectos vitais dos ideais da Revolução de Outubro, do ideal dos comunistas e que, com rigor, mais do que erros, desvios ou falhas humanas, podemos considerar responsável pelas derrotas sofridas.

Resultante deste “modelo” uma crise estava latente. Tornava-se imperioso superar a situação, reconduzir a construção do socialismo aos seus objectivos e valores essenciais, encontrar soluções.

O lançamento da “reestruturação”, mais conhecida pela expressão em russo Perestroika, continha, à partida, um tal conceito. Reestruturar com os trabalhadores e o povo o Estado, a sociedade e o Partido para reencaminhar e reforçar o socialismo, continuar e garantir a construção da sociedade socialista.

O facto é que, logo à partida, à sombra da Perestroika e invocando o seu nome, desenvolveram-se forças e processos visando não a rectificação mas a destruição do socialismo.

Nenhum dos objectivos proclamados foi concretizado. Isso foi possível porque com o negativismo e a renegação do todo o passado, o processo contra-revolucionário foi desencadeado e conduzido por muitos dos mais altos dirigentes do Partido e do Estado.

Não houve correcção e reforço do socialismo, mas o anárquico saque e destruição das estruturas económicas e do próprio partido, a liquidação de direitos sociais, a restauração do capitalismo.

Essa análise crítica e auto-crítica que realizamos, não significa que não afirmemos o valor e a superioridade do socialismo, da construção do socialismo na União Soviética e do valor histórico da Revolução de Outubro e dos seus ideais.

Na URSS empreendeu-se a realizou-se a construção do socialismo.

Desaparecida a União Soviética, que havia conseguido um equilíbrio de forças com o imperialismo, fazendo-lhe frente durante mais de meio século, o capitalismo lança uma gigantesca ofensiva procurando varrer e liquidar as forças que resistem e lutam por um mundo melhor.

Rompido o equilíbrio mundial de forças, o mundo é hoje menos livre, menos democrático, menos justo, menos fraterno, menos solidário, menos pacífico.

O objectivo imperialista de domínio do mundo tem conduzido a trágicos recuos civilizacionais, ao empobrecimento crescente da democracia, a perigosas limitações das liberdades fundamentais, à acentuação da exploração dos trabalhadores, a ataques brutais à soberania e à independência dos povos conduzindo a novas formas de colonialismo, a guerras de ocupação à custa de centenas de milhares de vidas humanas e a tragédias humanitárias, ao reforço do militarismo, do armamento e de alianças militares agressivas como a NATO e crescente domínio de outras estruturas do Imperialismo – UE, FMI, Banco Mundial e outros. Perseguição e criminalização do ideal comunista. Utilização de poderosas campanhas de condicionamento ideológico, de santificação do sistema capitalista, procurando inculcar nas pessoas a aceitação da inevitabilidade do capitalismo e da opressão e da exploração como sendo a modernidade.

Nesta contra-ofensiva do imperialismo para recuperar as posições que lhe foram arrancadas pela luta libertadora dos povos ao longo do século XX traduz-se, no plano militar, na intensificação da corrida aos armamentos, no reforço da NATO e no seu alargamento, na generalização de acções de desestabilização e na multiplicação de guerras de agressão e na promoção do terrorismo e do terrorismo de Estado, que levam à morte e à destruição em várias regiões do mundo, nomeadamente no Médio Oriente e Norte de África, e que são responsáveis pelo drama de populações deslocadas e pela tragédia dos refugiados.

Aprofunda-se a exploração capitalista dominada pelo grande capital financeiro e parasitário, com uma cada vez maior concentração do capital e da riqueza.

Agravam-se as formas de exploração, aumenta o desemprego e o trabalho precário, sem direitos.

Agrava-se o desequilíbrio da injusta repartição da riqueza entre o capital e o trabalho.

A pobreza, a fome, a doença continuam a dominar vastas regiões.

A exploração do trabalho infantil, o trabalho escravo, o tráfico de seres humanos, a corrupção e outras chagas do imperialismo não param de aumentar.

Com o pretexto do combate ao terrorismo avançam medidas securitárias coartando direitos e liberdades fundamentais, desenvolvem-se ataques ao movimento operário e sindical e outros movimentos de carácter progressista. Desenvolvem-se e crescem perigosamente forças xenófobas, racistas e fascistas.

Extraindo as lições dos acontecimentos passados e da realidade actual, o capitalismo com a sua natureza exploradora, opressora, agressiva e predadora, minado por perigosas contradições e conflitos é incapaz de resolver os grandes problemas da humanidade, torna cada vez mais necessária a sua superação revolucionária, confirma cada dia que passa o socialismo como exigência da actualidade e do futuro. O que se coloca, aos trabalhadores e aos povos é se estão condenados a submeter-se, ou se há forças que se oponham ao imperialismo. O exemplo e os ideais da Revolução de Outubro e as conquistas do socialismo permanecem como referências e valores que dão força e confiança de que é possível e necessária a luta para a sua própria libertação.

A ofensiva do capitalismo não é imparável nem irreversível. Existem forças que se lhe opõem e que resistem. Reforçando-se poderão impedir que o imperialismo atinja os seus objectivos.

Neste quadro, confirma-se o papel necessário e insubstituível de partidos comunistas fortes e enraizados nos trabalhadores e nas massas. A necessidade de aprofundar formas de cooperação e acção com o respeito pela autonomia e soberania de decisões de cada um.

«Na China, na República Popular Democrática da Coreia, no Vietname, no Laos e em Cuba continuam processos que, por afirmação dos próprios, apontam o objectivo e orientação a construção de uma sociedade socialista – com percursos, experiências, realidades e soluções próprias de cada um desses países e que constituem, na sua grande diversidade de situação quanto ao grau de desenvolvimento económico e social e modelos sociopolíticos um importante factor de contenção aos objectivos de domínio mundial do imperialismo.

Na actual situação estes países são alvo de um conjunto de manobras de pressão económica e financeira, de desestabilização e ingerência, de ofensiva ideológica e de cerco geoestratégico que condicionam, a par com os efeitos da crise do capitalismo, a que não estão imunes, o seu próprio desenvolvimento e opções de política económica e relações internacionais.

Enfrentam desafios e contradições que em alguns casos suscitam legítimas preocupações e dúvidas sobre a sua situação e evolução, que acompanhamos com atenção. Não tiramos conclusões precipitadas, desejando que o caminho seja o desse objectivo de construção do socialismo». (Da Resolução do XX Congresso).

Também noutros países, em particular na América Latina, se desenvolvem processos de sentido progressista de afirmação de soberania, e anti-imperialistas, fazendo frente à fortíssima pressão e ingerência do imperialismo.

Apesar de avaliações diferenciadas, de dúvidas e discordâncias, até mesmo de princípio que nos suscitem à luz das nossas concepções programáticas, cada um destes povos tem, naturalmente, o direito de decidir o seu futuro.

Nesta situação o caminho da acção e intervenção é o da luta política a curto, a médio e a longo prazo. Da luta em defesa dos interesses e direitos dos trabalhadores. Da luta em defesa de interesses nacionais, de soberania e de independência nacionais. Do reforço do Partido, da sua organização e influência.

Como se afirma na Resolução do Comité Central de Setembro de 2016 «a evolução mundial no seguimento das derrotas do socialismo revelou assim, ainda mais, a importância das históricas realizações do socialismo e dos avanços civilizacionais que lhe estão associados, e pôs em evidência a superioridade do novo sistema social na resolução dos problemas e concretização das aspirações dos povos.

A natureza do capitalismo não se alterou, o que coloca a exigência da sua superação revolucionária.

O século XX não foi o da morte do comunismo, mas o século em que o comunismo nasceu como forma nova e superior de sociedade.»

A Revolução Socialista de Outubro, a nossa experiência própria com a Revolução de Abril, o caminho da luta emancipadora dos povos e a evolução das sociedades confirmam que são os povos que acabam sempre por decidir da sua própria história.

Nesta nossa época, a da passagem do capitalismo para o socialismo, este será construído pela participação, vontade e empenhamento da classe operária e dos trabalhadores, do povo.

Temos a nossa própria concepção de socialismo para Portugal.

Por ele lutamos.

Bibliografia e textos consultados

- Resoluções de Congressos e do CC do PCP

- Textos e intervenções de Álvaro Cunhal