Entre Lénine e a imprensa estabeleceu-se uma relação natural. Tendo-se apercebido do tipo de ligações entre o jornal e o quotidiano das pessoas, e da capacidade da imprensa para influir sobre elas e contribuir para a transformação das realidades através da acção de massas, viu no jornalismo um instrumento privilegiado para a intervenção (dele e do partido) na prática política e na luta ideológica.
Mas em épocas diferentes entendeu a missão da imprensa também de maneiras diferentes. Em 1900, quando se tratava de criar o partido e enraizá-lo na classe operária e nos trabalhadores, apontou para a imprensa do partido uma função que já não seria a mesma quando, depois de Outubro de 1917, o principal objectivo era vencer a contra-revolução, combater os resquícios do passado e construir uma nova sociedade.
O que sempre permaneceu foi uma análise baseada em claras posições de classe e a fidelidade ao marxismo, enquanto íntima ligação da teoria à prática e da prática à teoria, em permanente e criadora relação dialéctica.
Por exemplo: em dado momento, quais as relações e a força relativa das classes? Quais as formas de que se reveste a luta de classes? Qual a sua tradução na luta ideológica? Qual o reflexo desta na consciência e na acção das massas? Quais as tarefas prioritárias e quais os meios para as concretizar?
Como se compreende se tivermos em conta estas interrogações — cuja validade e operacionalidade se mantêm actuais — Lénine não poderia dar da missão da imprensa (ou da táctica partidária, da política de alianças, etc.) uma definição abstracta, alheia à realidade concreta e às exigências da prática política revolucionária.
(“Organizador colectivo”)
O Iskra (Centelha) é geralmente considerado não só como o iniciador da imprensa bolchevique mas também como o verdadeiro pioneiro da imprensa comunista e organicamente ligada à vida e à luta do partido. Surgiu em Dezembro de 1900 como o começo da concretização e o instrumento para a defesa de um dos objectivos que nesses anos mais preocupava Lénine: a criação de um jornal político para toda a Rússia, concebido como, e cito, «uma parte de um gigantesco fole de uma forja que atiçasse cada centelha da luta de classes e da indignação do povo, convertendo-a num grande incêndio» .
Lénine era de opinião que para conduzir a luta contra a autocracia se tornava absolutamente necessária a construção de um partido de novo tipo — o partido da classe operária. Nas condições da luta clandestina, numa Rússia imensa onde a dispersão e o espontaneísmo constituíam poderoso entrave à luta organizada de massas, tal objectivo, segundo ele, só seria possível de alcançar através da publicação de um jornal único que saísse regularmente e unificasse sob uma mesma bandeira ideológica e organizativa os diversos grupos locais.
Tal como o partido, também o jornal seria de um novo tipo. Escreveu Lénine, recorrendo a uma imagem que se tornou clássica:
«A função do jornal não se limita [...] a difundir ideias, a educar politicamente ou a ganhar aliados. O jornal é não só um propagandista colectivo e um agitador colectivo, mas também um organizador colectivo. Neste último caso, pode comparar-se com os andaimes colocados num edifício em construção, que marcam os seus contornos, facilitam o contacto com os diversos grupos de operários, ajudando-os a distribuir as tarefas e a perspectivar os resultados obtidos graças a um trabalho organizado.»
Em torno do jornal foi-se criando uma verdadeira organização, ramificada pelo país, que teve um papel decisivo na estruturação e funcionamento do partido, dando-lhe coesão ideológica e unidade na acção.
(A imprensa burguesa)
Com o derrubamento do czarismo e o estabelecimento das liberdades públicas e o fim da censura, a Revolução de Fevereiro de 1917 instaurou na Rússia um regime democrático-burguês que deixava praticamente intactas as estruturas essenciais do absolutismo, no quadro de uma democracia formal que se limitava a continuar por novas formas a opressão e a exploração. No sector da imprensa isso também era visível, tendo dado oportunidade a Lenine para, há um século, formular juízos sobre a sociedade capitalista que mantêm toda a actualidade.
Sublinhava ele: «A edição de um jornal é um grande e lucrativo empreendimento capitalista, no qual os ricos investem milhões e milhões de rublos. Na sociedade burguesa, a “liberdade de imprensa” é a liberdade, para os ricos, de zombar, de perverter, mistificar sistematicamente, sem cessar, quotidianamente, por intermédio de milhões de exemplares, os pobres, as massas populares exploradas e oprimidas.»
«Os capitalistas [...] chamam “liberdade de imprensa” à supressão da censura e à possibilidade para todos os partidos de editar jornais à sua vontade.[...] Na realidade, é não a liberdade de imprensa, mas a liberdade de os ricos, da burguesia, enganarem as massas populares oprimidas e exploradas.»
Com a Revolução de Outubro a situação muda. Um dos princípios por ele defendidos para a imprensa partidária era a necessidade de uma grande participação no seu conteúdo do maior número possível de trabalhadores, devidamente organizada num amplo movimento de correspondentes operários e camponeses, na linha do conceito do jornal como organizador colectivo. Ao contrário do Iskra, o Pravda, agora já não tinha apenas como objectivo a formação do partido nem se destinava essencialmente aos núcleos de revolucionários, dirigindo-se às grandes massas e procurando tornar-se para elas um pólo de atracção.
Mas Lénine, no I Congresso da Internacional Socialista, diz: “Os capitalistas chamam liberdade de imprensa à liberdade dos ricos utilizar o poder económico para fabricar e falsificar a chamada opinião pública. Desviando-a da tarefa histórica concreta de libertar a imprensa da subjugação ao capital.»
Pelo que ficou muito sumariamente sintetizado pode-se avaliar o inigualável contributo teórico que Lénine deu à análise da imprensa burguesa e à construção e orientação da imprensa partidária – nomeadamente no caso de Portugal e do nosso órgão central.
(Avante!)
O primeiro número do Avante! clandestino surge em Fevereiro de 1931, passando a sair regularmente desde 1941 até ao 25 de Abril, em estreita ligação com os combates do Partido. Combates a que não faltam heróis e mártires que na luta pela liberdade sacrificaram a vida, como foi o caso – um entre muitos – de José Moreira, responsável pelo aparelho de imprensa do partido na segunda metade dos anos quarenta, torturado pela PIDE até à morte sem prestar nenhuma informação, e que um dia escreveu, lapidarmente: “Uma tipografia clandestina é o coração da luta popular. Um corpo sem coração não pode viver.”
Como disse Álvaro Cunhal, numa sessão comemorativa do 44º aniversário do Avante!, em 1975, em Sacavém, “a história do Avante! clandestino é um dos mais importantes aspectos da luta dos comunistas portugueses pela liberdade. E lutar pela liberdade não é apenas dar vivas à liberdade, é mostrar na actividade prática, na actividade revolucionária, a decisão, o espírito de sacrifício e a combatividade necessários para nas mais difíceis condições saber exercer as liberdades mesmo quando elas são negadas ao nosso povo”, como acontecia durante o fascismo.
Com o 25 de Abril de 1974 a situação modifica-se radicalmente. Doze dias depois, em 17 de Maio, nas ruas de Lisboa, do Porto e de outros pontos do país, nas zonas de maior movimento, junto às fábricas e às escolas, nos mercados e nos transportes públicos, o pregão “Olha o Avante! Comprem o jornal dos comunistas portugueses!” era gritado por dezenas e dezenas de vendedores voluntários, uns membros do Partido, outros não, irmanados na emoção comum de, em público e de viva voz, proclamar a existência legal do órgão do PCP.
Uma das primeiras decisões da direcção do Partido tinha sido a de iniciar, assim que possível, a publicação do Avante!. Poucos dias depois realizou-se a primeira de várias reuniões preparatórias, com a participação de Álvaro Cunhal e de jornalistas profissionais membros do Partido que trabalhavam em vários jornais. Camaradas gráficos, camaradas que estavam na editorial Avante! Também com informação, administrativos, fotógrafos e outros. Alguns vindos da clandestinidade, ligados a estruturas de informação como a Rádio Portugal Livre e o próprio Avante!, constituiu-se um colectivo empenhado em criar as condições para que o objectivo fosse alcançado.
Desde o segundo nº Álvaro Cunhal encarrega-se de redigir os editoriais, o que continuaria a fazer mesmo quando ministro do Governo Provisório.
António Dias Lourenço, que figurava já no cabeçalho como director interino, só dias depois entraria “ao serviço”, visto estar a recuperar de uma pneumonia apanhada na prisão, de onde acabara de ser libertado pelos capitães de Abril.
Com quatro páginas de grande formato, esse número memorável teve uma tiragem histórica: aos 300 mil exemplares inicialmente previstos tiveram que se imprimir, para responder à procura, mais 200 mil, o que perfez meio milhão, um número dez vezes superior à média dos diários portugueses de então.
A alegria nas ruas começara já antes na tipografia de O Século, onde o jornal foi composto, paginado e impresso. Então empenhados numa greve às horas extraordinárias, os tipógrafos, com a militância de uns e a solidariedade de outros, asseguraram a edição do jornal. No final houve palmas, abraços e lágrimas.
A verdade é que, camaradas: todos estávamos habituados a este Avante!. E o que então sai das máquinas, e daí todo o entusiasmo, é isto.
A publicação do Avante! legal representava um novo e significativo passo na consolidação da democracia portuguesa, a que outros se seguiriam: no dia 18 Álvaro Cunhal dava em Lisboa a sua primeira conferência de imprensa; no dia 19 a organização de Lisboa promovia o seu primeiro comício, no campo do Alhandrense, a que poucos dias depois se seguiriam os grandes comícios no Pavilhão dos Desportos de Lisboa e no Palácio de Cristal do Porto; no fim desse mês de Maio, o Partido já tinha aberto, de norte a sul do país, cerca de trinta Centros de Trabalho, ao mesmo tempo que os camaradas da editorial Avante! editavam, pela primeira vez na legalidade, o livro com o Programa do PCP.
O Avante! não estava sozinho.
(“Um jornal sem papel e sem distancias”)
A importância que Lénine dava à informação enquanto forma de intervenção social leva-o a estar atento aos avanços tecnológicos, como era o caso da rádio, que nas primeiras duas décadas do séc. XX dava passos decisivos para se tornar o segundo, a seguir à imprensa, grande meio de comunicação de massas.
Conhecedor dos êxitos das investigações do cientista soviético Bonch-Bruievich no laboratório de Nizhni-Novgorod, que Lénine considerava, e cito, de “gigantesca importância”, envia-lhe uma mensagem (Fevereiro de 1920) em que expressa, cito, «o profundo agradecimento e simpatia por motivo do grande trabalho que está a levar a cabo».
E Lénine sublinhava: «Esse jornal sem papel e “sem distancias” que está criando será algo de grandioso. Para este trabalho e outros parecidos lhe prometo toda a cooperação em todos os aspectos.»
A Rádio Moscovo começaria a emitir em 1922, no fim da década também em alemão, francês e inglês e nos anos seguintes com emissões especiais para mais de cinco dezenas de países, incluindo Portugal, onde tinha ouvintes assíduos.
(Rádio Portugal Livre)
O nosso partido também estava atento ao novo meio de comunicação com as massas. Em princípio de 1962 decidiu criar uma rádio clandestina, que óbviamente tinha que emitir do estrangeiro. Com a solidariedade da União Soviética e de outros países socialistas, surge a RPL - Rádio Portugal Livre, por razões de audição instalada na Roménia, que a partir de 12 de Maio desse ano transmite em onda curta, diariamente, programas de meia hora – de manhã, à tarde e à noite.
Em português, naturalmente, e produzida, redigida e apresentada por camaradas do nosso partido destacados para essa tarefa. Dirigida pelo camarada Aurélio Santos, fornecia informações sobre o que se passava no nosso país – as greves, a luta antifascista, a guerra colonial, as posições do partido, tudo aquilo a que os ouvintes em Portugal não tinham acesso. Na expressão uma vez utilizada pelo Aurélio, ligar para a RPL era, cito, “premir o botão que desligava a censura”.
Invocando a feliz e original expressão de Lénine, os comunistas portugueses tiveram a oportunidade de possuir e beneficiar do seu “jornal sem papel e sem distancias”.
Camaradas,
por papel ou por outros meios, à distância ou mão a mão, a luta, pela informação, pelo esclarecimento, e pela mobilização, continua