centenario | Lenine e o materialismo militante

Intervenção de Barata Moura

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Intervenção de Barata Moura

§ 1. Moldura.

Não foi propriamente para agradar aos filósofos que Lénine coloca no frontão da doutrina de Marx: o «materialismo filosófico».

E também não é para, em nome de umas filosofâncias agremiadas, devolver um salamaleque (nem sequer esboçado) que eu me atrevo a adiantar que todo o pensamento teórico e toda a intervenção prática de Lénine têm, no fundo, por moldura um enfoque materialista dialéctico das realidades.

Para transformar, é preciso compreender.

E, em rigor, só se compreende, transformando.

Não é uma subtileza de escolar, nem um capricho de escola.

É uma exigência do ser que reclama inteligibilidade, e que no revolucionamento não dispensa a inteligência concertada para os consertos devidos.

§ 2. Méritos.

Um dos mais apreciáveis méritos de Lénine foi ter conseguido – em termos de consistência, e de um modo continuado – converter esta atitude de estudo e de pesquisa (materialmente fundados) em comportamento mobilizador das forças sociais de um povo.

Para o derrube da ordem capitalista ao tempo vigente, rumo à edificação de um viver comunitário em bases consequentemente socialistas.

Uma inapagável experiência histórica.

Com impacte perdurante, nas subsequentes lutas prolongadas de quem trabalha por um destino de efectiva emancipação de todos os seres humanos, e do ser humano todo.

A obra materializou-se em resultados.

Mas, como já o idealista dialéctico Hegel lembrava, desligado da mediação que a ele conduz, e nele palpita, «o resultado nu» (das nackte Resultat) não passa de um cadáver descarnado do qual a vida se desprendeu.

Lénine pensou e agiu: revolucionarimente.

Na diferença dos tempos, e a tempo de introduzir diferenças.

Nas condições russas de 1894, a tarefa partidária central consistia em organizar a insatisfação e o mal-estar generalizadamente manifestos num poderoso movimento de classe – esclarecido nos objectivos, e temperado nas provações --, susceptível de dirigir com êxito a luta contra o regime burguês e os seus sustentáculos.

No acendido calor das convulsões revolucionárias de 1905, importava, no plano político, compreender a natureza dialéctica do momento. As constatadas divergências relativamente ao socialismo não podiam entravar uma luta pela «democracia» e pela «república», para cujo desenvolvimento uma ampla unidade de vontades se encontrava já reunida.

Conquistado o poder, vencida uma guerra civil e de agressões imperialistas, aberto o conturbado processo de uma construção socialista, mais imperioso se tornava ainda não descurar o imprescindível esteio social das mudanças em empreendimento.

Escreve Lénine:

«Um dos maiores e mais perigosos erros dos comunistas (como em geral dos revolucionários que tenham realizado com êxito o começo de uma grande revolução) é imaginarem que a revolução pode ser levada a cabo só pelos revolucionários. Pelo contrário, para o êxito de qualquer trabalho revolucionário sério é necessário compreender e saber tornar realidade a ideia de que os revolucionários só podem desempenhar um papel como vanguarda da classe verdadeiramente vital e verdadeiramente avançada. A vanguarda só cumpre as suas tarefas de vanguarda quando sabe não se desligar da massa que dirige, mas fazer avançar realmente toda a massa. Sem a aliança com os não comunistas, nos mais diversos campos de actividade, não pode sequer falar-se de qualquer construção comunista eficaz.».

§ 3. O ponto de vista.

Esta citação consta de um texto conhecido, cujo contexto, todavia, nem sempre é recordado.

É dessa contextura que irei falar. Com brevidade quase telegráfica. Deixando para o rodapé a documentação respectiva que me foi dado reunir.

«Sobre o significado do materialismo militante» é uma mensagem que Lénine dirige, em Março de 1922, ao colectivo da revista Sob a bandeira do marxismo, que nesse ano iniciara a publicação.

Em Fevereiro, Trótski manifestara também o seu apoio à iniciativa.

Numa carta -- que foi publicada como artigo --, evocava as duras e precárias condições em que os velhos dirigentes do Partido haviam realizado a sua formação teórica, e sublinhava a necessidade de preparar com outra solidez e rigor as camadas jovens de militantes.

Estes são os pontos que, numa retrospectiva de 1927, Trótski destaca.

Outros mereceriam, no entanto, menção. Sobretudo, para debates em que hoje aqui não entro. Como o (magro) entendimento de que a «educação» deveria consistir num aprendizado das «leis fundamentais do desenvolvimento histórico», ou o (gordo) destaque conferido a uma acentuação vincada de um certo «voluntarismo» atmosférico tecnicamente assistido.

Lénine refere o contributo de Trótski, em termos de circunstancial cortesia. Mas coloca a questão num tabuleiro político significativamente distinto.

Trótski encarava o processo como uma actividade decorrendo no interior do Partido. Lénine situa o eixo das rotações no alargamento de perspectivas que a unidade do projecto encerra.

Apoiando-se, de resto, na Nota de Abertura do próprio mensário, Lénine reforça:

«Nem todos aqueles que se agrupam em torno da revista […] são comunistas, mas […] são todos materialistas consequentes. Penso que esta aliança de comunistas com não comunistas é absolutamente necessária e determina acertadamente as tarefas da revista.».

§ 4. A miscelânea.

Vagarchak Arutiunóvitch Ter-Vaganian, o primeiro editor de Sob a bandeiro do marxismo, era bolchevique; mas estava, à época, próximo das posições de Trótski -- o que poderá explicar a carta de conforto por este enviada.

Do corpo redactorial fazia igualmente parte Abraham Debórine. Lénine lera, e anotara, um artigo dele em 1909. Após a transferência para um estágio prolongado nas barricas do menchevismo, Debórine encontrava~se agora em trânsito de reaproximação ao Partido, que, poucos anos depois, o viria a admitir.

Penso, no entanto, que a silhueta tutelar de Gueórgui Plekhánov, falecido em 1918, é fulcral para o entendimento desta plataforma de convergências em torno de um materialismo filosófico:

Num meio cultural russo, onde a poltrona idealista era ainda academicamente dominante, onde os revolucionários com efectiva preparação filosófica eram escassos, e onde, mesmo nos sectores politicamente avançados, o marxismo sofria, a cada cavadela, descaracterizações graves de pendor idealizante.

Apesar de todas as divergências políticas não silenciadas, e de todos os reparos filosóficos justificados – designadamente, no respeitante à solidez do dialecticismo, ao enclausuramento tendencial na teorese, ou a divagações confusionistas pela concepção dos «hieroglifos» --, Lénine nunca deixou de considerar que:

«Plekhánov foi o único marxista dentro da social-democracia internacional que criticou, do ponto de vista do materialismo dialéctico consequente, aquelas incríveis banalidades acumuladas pelos revisionistas.».

Debórine fora discípuklo de Plekhánov, que, em 1915, lhe prefaciara um escrito sobre a filosofia do materialismo dialéctico.

Ter-Vaganian era um especialista do pensamento plekhanoviano, por Lénine como tal reconhecido.

No primeiro fascículo da revista, é republicado um artigo de Plékhanov, que, em 1895, saíra no Devenir Social.

Todavia, quero ainda chamar a atenção para dois outros aspectos – relevantes, pese embora a circunstancialidade – que, a meu ver, respaldam esta chamada tardia de Plekhánov ao palco das operações.

§ 5. Reciclagem de materiais.

A fórmula «materialismo militante» não provém imediatamente do escritório de Lénine. Nem é uma criatura dos editores da revista, que, como já vimos, a assumem como emblema.

O bloco foi extraído das pedreiras de Plekhánov.

Materialismus militans é o título que congrega, na publicação em volume, três cartas extensas em que Plekhánov, entre 1908 e 1910, desembrulha a sua contundente crítica – militantemente, materialista – contra o idealismo das posições de Alexandr Alexandróvitch Bogdánov, que, por sinal, politicamente, alinhava com os bolcheviques.

Atrevo-me até a adiantar uma explicação inusitada para a cunhagem do rótulo.

Plekhánov engendra a etiqueta, não por simples decalque contrastivo a partir da ecclesia militans – com abençoado curso nos cursilhos, e nas belicosas pastorais, de jesuítas e de luteranos --, mas indo à bica de uma outra fonte inspiradora beber.

Em 1797, Jean-François La Harpe, nos rancores da sua «refutação» de Helvétius – um opúsculo que Plekhánov conhece, e cita amplamente --, qualifica o materialismo francês do século XVIII, na mira de lhe denegrir as implicações revolucionárias, como «uma doutrina armada» (une doctrine armée).

Neste mesmo passo, La Harpe refere, porém, que se trata de uma «expressão feliz de um orador estrangeiro» (expression heureuse d’un orateur étranger).

Em resultado de uma pequena investigação acerca do possível berço desta tirada tão grande, penso poder atribuir a paternidade do dito a Edmund Burke.

Com efeito, em 1796, no prosseguimento das suas encrespadas diatribes contra a Revolução Francesa e a maléfica propagação dos seus ideais, Burke identifica como o inimigo ideológico a reprimir, e a abater, aquela perniciosa filosofia – materialista, com recorte jacobino – que encabeça a subversão dos antigos regimes estabelecidos. Eivada de «princípios destruidores» (destructive principles), ela constitui an armed doctrine, «uma doutrina armada».

É pois contra estas alegações pejorativas reinantes – e precisamente num sentido que destaca, pelo ângulo positivo, a militância revolucionária do materialismo -- que Plekhánov entendeu forjar o seu materialismus militans.

Acresce – retomando a fieira ao desenrolamento da nossa meada – que a própria metáfora do «estandarte», que a revista ostenta no nome, se me afigura ter também ancestralidade plekhanoviana.

Efectivamente, em 1910, Plekhánov denunciara já que «a reacção burguesa» na Rússia se desenvolvia ao abrigo da «bandeira do idealismo filosófico», pelo que como tarefa impreterível se impunha -- a despeito das condescendências de Kautsky -- dar-lhe resoluto e esclarecido combate, desde posições materialistas consistentes.

A reminiscência deste desafio – prosseguido numa quase literalidade dos termos – descobre-se no coração desta inicitiva editorial de 1922, que, depois, o reformula, e converte em programa anunciado.

As expressões adoptadas e o desígnio genérico remontam -- no que a esta equipa diz respeito -- directamente ao magistério de Plekhánov.

No entanto, seria incorrecto, porque limitativo, apagar do mapa, ou remeter para os subúrbios, as fundamentais (e fundamentadas) contribuições autónomas de Lénine. Ao longo de repetidas e infatigáveis batalhas, para as quais, de resto, muitas vezes procurou chamar um Plekhánov reticente, nas ambiguidades do seu menchevismo.

Penso, por isso, que o tortuoso ramalhete destas interlocuções – sempre, mesmo que em surdina, mantidas – se vem a completar em 1924.

Logo após a morte de Lénine, Debórine, nas páginas de Sob a bandeira do marxismo, apresenta-o como: «o materialista militante», num extenso artigo onde, aliás, a crítica leninista a vários aspectos filosóficos da concepção plekhanoviana é referida, e aceite como válida.

§ 6. As recomendações.

O direccionamento político que Lénine imprime à sua mensagem de 1922 ganha, neste contexto, toda uma outra nitidez de contornos:

Atrair, e mobilizar, a totalidade dos materialistas consequentes e militantes – independentemente de, por ideário, serem comunistas, ou não – para a luta contra «a reacção filosófica» que encharca de idealismo a mente borboletante dos «cultos», e a crença inquestionada dos «crédulos».

Conhecer, e valorizar, em ampla escala, o património genuinamente materialista que outros séculos nos legaram, sem abrir mão, por certo, do imprescindível exame crítico competente.

Recompor, e cultivar, mesmo entre os não-especialistas, o estudo aprofundado de uma «sólida fundamentação filosófica» que do tronco do materialismo não elimine a constitutiva dimensão dialéctica com que Marx a soube enriquecer.

E, nesta precisa sede, Lénine lança um apelo pedagógico.

Que, ao redor, provocava engulhos a certas deglutições (e forte celeuma veio, e continua, a suscitar). Mas que dispõe, na armadura e no alcance, de bem alicerçadas potencialidades -- ontológicas, epistemológicas, e práticas – sempre que se trate da compreensão e do revolucionamento das realidades:

«Organizar o estudo sistemático da dialéctica de Hegel de um ponto de vista materialista, isto é, da dialéctica que Marx aplicou praticamente no seu O Capital como nos seus trabalhos históricos e políticos».

Em suma, o materialismo militante tem que ser combativamente dialéctico – na teoria, e na prática.

O que significa que o materialismo militante tem que ser: revolucionário.

§ 7. Remate.

A traço grosso, e fala comprida, procurei transmitir-vos a moldura deste texto, sem pela sua miudeza me adentrar.

Mas, porque estamos num evento que celebra a Revolução de Outubro – com vicissitude: na génese, no desenvolvimento, e nos desenlaces – não resisto a lembrar outras prevenções.

Em 1878, Engels já detectara, em Eugen Dühring, «uma doença infantil» (eine Kinderkrankheit), a que, sobretudo, «o estudante alemão» (der deutsche Studiosus) era propenso, quando – com aquela ignorância de quem julga saber tudo -- iniciava a sua «conversão à social-democracia» (Bekehrung zur Sozialdemokratie).

Num opúsculo de 1920, dedicado à semiologia actualizada dos sintomas desse endémico surto (que também ataca os velhos) -- e onde o aparente esquerdume da frase mal disfarça o efectivo direitame das actuações – Lénine escreve:

«Não é difícil ser revolucionário quando a revolução já rebentou e se inflamou, quando todos aderem à revolução por simples entusiasmo, por moda, e por vezes até por interesse numa carreira pessoal. […]. É muitíssimo mais difícil – e muitíssimo mais valioso – saber ser revolucionário quando ainda não existem as condições para a luta directa, aberta, autenticamente de massas, autenticamente revolucionária, saber defender os interesses da revolução (mediante a propaganda, a agitação, e a organização) em instituições não revolucionárias e muitas vezes francamente reaccionárias, numa situação não revolucionária, entre massas incapazes de compreender imediatamente a necessidade de um método revolucionário de acção. Saber encontrar, descobrir, determinar com exactidão a via concreta ou a viragem especial dos acontecimentos que conduza as massas para a verdadeira, final, decisiva e grande luta revolucionária --  nisto consiste a principal tarefa do comunismo actual na Europa Ocidental e na América.».

Lénine sabe do que fala.

Nós temos que aprender a agir, com aquilo que temos.

E não enjeitamos nem o peso, nem a magnitude, do encargo.

Procurando compreender, na retorcida materialidade dialéctica das realidades, os caminhos de uma materialização prática do seu revolucionamento.

Se possível, introduzindo, na diferença dos tempos, aquela marca, com recheio, que lhes permite vir a tornarem-se diferentes.

Pela revolucionária paciência com que me escutaram, fico-vos muito obrigado.