Falar da Revolução de Outubro é confirmar a razão do Manifesto Comunista quando diz que “a emancipação dos trabalhadores tem que ser obra dos próprios trabalhadores.” A Revolução de Outubro foi obra de um povo explorado nos campos por um regime de tipo feudal e nas atividades urbanas industriais por um capitalismo voraz muito dependente de capitais estrangeiros.
As exigências da participação na 1ª Guerra Mundial obrigaram o governo provisório a desviar para as forças armadas uma boa parte dos alimentos e a intensificar a mobilização obrigatória de jovens para as fileiras, o que quase paralisou a atividade agrícola. No final de 1916, a Rússia estava à beira do colapso, vivendo sob um rigoroso racionamento de bens essenciais, decretado para enfrentar uma grave crise alimentar. Verificaram-se então milhares de manifestações de protesto e de greves nas atividades industriais, mobilizando verdadeiras multidões, nas cidades e nos campos. Mais de um milhão de soldados, na grande maioria camponeses, desertaram de uma guerra que não era a sua e regressaram aos campos em busca de alimentos, mobilizando a sua gente para a luta contra a guerra e contra o czarismo.
Em abril/1917, mediante autorização do Soviete de Petrogrado, os socialistas aceitaram participar no Governo Provisório, que apostava na continuação da Guerra (Kerenski foi nomeado Ministro da Defesa). Os delegados bolcheviques votaram contra e o Partido Bolchevique ficou na oposição, intensificando e liderando os protestos populares em defesa de uma paz imediata.
Foi este povo que, lutando nas ruas e nos sovietes, rejeitou a guerra imperialista que estava a destruir a sua Pátria e a sua juventude, fazendo da Revolução de Fevereiro de 1917 mais do que uma simples revolução burguesa e democrática, como que num processo de aprendizagem de uma futura revolução socialista.
Falar da Revolução de Outubro é recordar a clarividência de Lenine e dos seus companheiros, a ala maioritária dentro do Partido Operário Social-Democrata Russo, que no Congresso de 1903 se dividiu entre Bolcheviques (maioritários, que viriam a transformar-se no Partido Comunista) e Mencheviques (minoritários, que acreditavam numa evolução gradual para o socialismo, pela via parlamentar). Os bolcheviques lutaram, desde o início, contra a participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial, por a considerarem uma guerra desencadeada pelos interesses imperialistas em conflito. E, perante as condições criadas pela Guerra, compreenderam que os dois temas maiores que mobilizavam a grande massa do povo contra os governos que tinham iniciado a Guerra e que teimavam em a continuar (com o apoio da generalidade dos demais partidos, incluindo os sociais-democratas de Plekanov e os socialistas de Kerensky) eram a questão da PAZ e a questão da TERRA. Esta leitura dos acontecimentos foi plenamente confirmada pelos mil delegados ao Primeiro Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia, que reuniu em Petrogrado, entre 16 de junho e 7 de julho de 1917.
O Decreto sobre a Paz foi a primeira lei do Conselho de Comissários do Povo, presidido por Lenine, promulgada no dia seguinte ao da vitória militar da Revolução. O novo poder soviético proclamava: “continuar a guerra para decidir como dividir os povos fracos conquistados entre as nações fortes e ricas é considerado pelo Governo o crime mais grave contra a humanidade.” Consequentemente, o Governo soviético dirigia-se aos governos dos países beligerantes anunciando a sua disposição de assinar imediatamente um tratado de paz sem anexações nem indemnizações e de estudar quaisquer outras condições de paz. Por último, os representantes do poder soviético dirigiam-se aos trabalhadores e aos povos dos países em guerra, estimulando-os a que ajudassem, com a sua luta, a luta do proletariado e do povo russo pela causa da PAZ.
Seguiu-se o Decreto sobre a Terra, que veio legalizar a situação já criada no terreno, uma vez que os camponeses, levando à prática a palavra de ordem dos bolcheviques, já tinham tomado posse das terras em muitas regiões da Rússia.
Falar da Revolução de Outubro é recordar a grande capacidade do partido dos bolcheviques para se adaptar às novas realidades que emergiam na Rússia. Como é sabido, do ponto de vista teórico, os bolcheviques defendiam que a revolução na Rússia teria de passar por uma fase de revolução burguesa e de desenvolvimento capitalista, até que amadurecessem as condições para uma revolução socialista empreendida e dirigida pelos trabalhadores. No entanto, tendo em conta a evolução dos acontecimentos, Lenine e os seus companheiros passaram a atuar com base nestes quatro princípios orientadores:
1) o facto de a Rússia ser um país economicamente débil e socialmente retrógrado (o elo mais fraco da cadeia imperialista) iria provocar um descontentamento profundo e generalizado: junto dos soldados e suas famílias, por se verem condenados a morrer numa guerra que não lhes dizia nada; junto dos camponeses e do operariado urbano, que sofriam duramente as dificuldades económicas dramaticamente acentuadas pela Guerra;
2) este descontentamento poderia ser aproveitado para animar e organizar o movimento revolucionário na Rússia, reunindo à sua volta camponeses, soldados e operários;
3) nas circunstâncias históricas concretas geradas pela Guerra, a Rússia deveria avançar para a revolução socialista, porque estava em condições de dar este primeiro passo (foi esta a posição votada maioritariamente pela direção bolchevique em outubro/1917);
4) a 1ª Guerra Mundial – fruto das profundas contradições no seio do capitalismo, contradições que ela pusera em evidência e agravara – provocou a desagregação do campo imperialista, o que acabaria por torna inevitável a aceleração do processo da revolução socialista na Alemanha e em outros países europeus.
● Falar da Revolução de Outubro é pôr em relevo a decisão dos trabalhadores e dos soldados de retomar o modelo ensaiado em 1905, constituindo por todo o país centenas de sovietes (conselhos), integrados por representantes eleitos pelos operários, camponeses e soldados, representantes que poderiam ser destituídos a todo o tempo pelo corpo que os elegera.
O principal – que viria a ter um papel decisivo no êxito do processo revolucionário – foi o constituído na capital, o Soviete dos Operários, Camponeses e Soldados de Petrogrado. O seu objetivo não era o de substituir o Governo Provisório. A verdade, porém, é que rapidamente se instalou uma situação de dualidade de poder. Porque os regimentos da capital anunciaram que só obedeceriam às ordens que tivessem a assinatura dos seus camaradas eleitos para o Soviete de Petrogrado, exemplo que foi seguido pelos sovietes de várias outras cidades russas. Uma boa parte do poder efetivo passou a residir nos sovietes, enquanto órgãos do poder revolucionário, que decidiram libertar os presos políticos, dissolver os velhos corpos de polícia e assegurar a custódia do Banco Central e de outras instituições financeiras fundamentais.
Quando Lenine chegou a Petrogrado (vindo da Suíça, onde estava exilado), os bolcheviques não eram ainda maioritários entre os delegados eleitos para os sovietes (tanto na capital como em outras cidades). Mas os sovietes afirmavam-se já como poderosos instrumentos revolucionários, que começavam a lançar as bases de um novo tipo de estado, repetindo, desta vez com êxito, a experiência da Comuna de Paris, em 1871.
● Falar da Revolução de Outubro é recordar e valorizar o génio de Lenine, que, sentindo que as condições para a tomada do poder pelos sovietes começavam a amadurecer, convenceu o seu partido a lançar com força a palavra de ordem “Todo o poder aos sovietes!”, contrariando o projeto político dos partidos que integravam o Governo Provisório e o Partido Socialista Revolucionário, que assentava na defesa de uma democracia burguesa de base parlamentar, entregando tudo o resto ao “desenvolvimento natural da História”, congelando a questão da paz e a questão da terra.
Mas é também valorizar a sua sabedoria ao defender que a tomada do poder pelos sovietes era um passo que só deveria ser dado quando os bolcheviques e seus aliados tivessem conseguido a maioria dos delegados eleitos no Soviete de Petrogrado, no Soviete de Moscovo e nos sovietes das grandes cidades russas (o que viria a acontecer pela primeira vez em finais de setembro/1917, com a eleição de Trotsky para Presidente do Soviete de Petrogrado).
Entretanto, a ação dos bolcheviques a favor da PAZ colhia cada vez mais apoio nos regimentos de Petrogrado, que recusaram abertamente reprimir os manifestantes contra o poder instalado e contra a Guerra e distribuíram armas pelos manifestantes, aos quais se juntaram muitos soldados desertores.
● As potências imperialistas insistiam em que a Rússia continuasse a guerra contra a Alemanha, mantendo ativa a frente leste. A obstinação do Governo bolchevique em chegar rapidamente a um acordo com a Alemanha serviu de pretexto aos inimigos da revolução soviética para acusarem Lenine de ser um agente alemão (invenção que teve eco em alguma imprensa portuguesa).
No interior da Rússia, os czaristas e muito oficiais das forças armadas queriam continuar a combater para evitar a desonra de uma derrota militar frente à Alemanha. Esta era a posição do General Lavr Kornilov, Comandante-Chefe do Exército Russo. Em julho/1917 fez um pronunciamento denunciando Lenine e os seus “espiões alemães”, propondo a sua condenação à morte, e propondo simultaneamente a dissolução de todos os sovietes. Demitido por Kerensky (convencido de que Kornilov se propunha implantar uma ditadura militar que poderia levar ao regresso do czarismo), o general ensaiou uma tentativa de golpe militar, contando com a ajuda de equipamento e conselheiros ingleses e confiando na lealdade dos soldados cossacos e tchechenos. Com a aquiescência do próprio Kerenski (que não confiava no exército tradicional), os Guardas Vermelhos bolcheviques começaram a organizar as populações para a defesa de Petrogrado. O golpe acabaria por abortar em agosto/1917, perante a deserção em massa dos soldados cossacos.
O fracasso desta uma tentativa de golpe contra-revolucionário e as sucessivas derrotas na frente da Guerra alteraram as condições em sentido favorável aos defensores da paz imediata. Em 16 de outubro, o movimento revolucionário conseguiu uma vitória importante: os regimentos da guarnição de Petrogrado anunciaram que se recusariam a cumprir o anunciado propósito do Governo Provisório de os enviar para a frente, com o objetivo de os retirar da capital e de os substituir por militares leais ao Governo. Numa altura em que, no partido bolchevique e nos sovietes mais importantes, começava a preparar-se o momento da tomada do poder, esta deliberação foi entendida pelos revolucionários como um sinal claro de que os regimentos de Petrogrado estariam com a revolução socialista, ao lado dos operários e dos camponeses, contra o desacreditado Governo Provisório.
Por estes dias, a frota instalada em Kronstadt chega ao Neva e atraca ao lado do Cruzador Aurora. Ao início da tarde de 6 de novembro (segundo o calendário ortodoxo) reúne o Soviete de Petrogrado, no qual apareceu Lenine (saído da situação de semi-clandestinidade em que se encontrava), tendo feito uma intervenção em que defendeu uma paz justa imediata, o confisco das terras pertencentes aos grandes proprietários, o estabelecimento do controlo operário e a nacionalização da banca.
Na noite desse mesmo dia, quando o Segundo Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia iniciava os seus trabalhos, ouvem-se tiros de canhão: era o Cruzador Aurora a bombardear o Palácio de Inverno, sede do Governo Provisório, de onde já tinha saído o Primeiro Ministro Kerensky. A tomada do Palácio de Inverno, às 3 horas e dez minutos do dia 7 de novembro de 1917, foi o momento simbólico da vitória da revolução soviética.
Falar da Revolução de Outubro é compreender o alcance revolucionário do Tratado de Brest-Litovsk, assinada em dezembro/1917, em condições que não permitiram mobilizar os aliados da Rússia (adversários declarados do poder soviético) para iniciar conversações de paz com a Alemanha e que tornaram particularmente difícil abrir negociações separadas para estabelecer a paz com o agressor alemão.
Mas Lenine e o Governo Soviético sabiam que a conquista da Paz era tanto ou mais importante, para a grande massa da população russa, do que a questão da terra. Por isso, resolveram iniciar imediatamente as negociações de paz, apesar das condições dramáticas em que tiveram de o fazer, e aceitaram depois a paz possível, uma paz humilhante, com gravosas cedências (perda dos Países Bálticos, de uma parte da Bielorrússia, da Polónia e da Ucrânia), por entenderem que este era o preço a pagar para, no imediato, salvar a Revolução.
Falar da Revolução de Outubro é recordar o Decreto Sobre as Nacionalidades (aprovado em 15 de novembro de 1917), que veio reconhecer aos povos não russos do império czarista o direito à autodeterminação e à secessão. Coerentemente, o Governo soviético foi o primeiro a reconhecer a independência da Finlândia, quando o povo do Grão-Ducado Autónomo da Finlândia declarou a sua independência da Rússia (em 6 de dezembro de 1917).
Falar da Revolução de Outubro é recordar a guerra civil, que se arrastou durante três longos anos, quase até finais de 1922.
Derrotados em várias votações durante o Quinto Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia (julho/2018), os anarquistas e os socialistas revolucionários procuraram sabotar o Tratado de Brest-Litovsk, com o objetivo de envolver o Governo soviético numa nova guerra contra a Alemanha. Esta a motivação do assassinato do Embaixador da Alemanha na Rússia, Von Mirbach.
Foi o início da guerra civil: de um lado, o Governo chefiado por Lenine e o Exército Vermelho; do outro lado, o Exército Branco e todos os anti-bolcheviques (incluindo os anarquistas, os socialistas revolucionários e outros grupos esquerdistas). Estes últimos contaram com a colaboração ativa de 14 países adversários da revolução soviética: tropas inglesas, francesas e holandesas entraram no norte do País (Arkhanguelsk), na Crimeia e na Geórgia, tendo retirado em 1920; tropas americanas e japonesas entraram na Sibéria Oriental e ocuparam Vladivostoque (os japoneses só retiraram em 1922). O objetivo último das potências imperialistas era o de garantir a continuação da Rússia na guerra contra a Alemanha e proteger a Europa Ocidental da contaminação pela revolução soviética e pelo ideário comunista (Georges Clemenceau falou de “cordão sanitário”).
O novo poder soviético não queria a guerra civil, nem a provocou. A guerra civil foi imposta aos povos da Rússia e ao Governo Soviético pela nobreza latifundiária e parasita, pela burguesia russa, pelos generais czaristas e pelos países imperialistas que procuraram asfixiar a revolução. À frente do seu povo (que, já exaurido pelo esforço da Guerra, aceitou pagar o elevado preço de 7 milhões de mortos para defender a sua Revolução), o Governo soviético ganhou a guerra, com o apoio das massas populares que tinham feito a Revolução e também com o apoio dos povos não russos do império, que se sentiam finalmente libertos das teias imperiais (“um czar, uma fé, uma língua”).
Derrotados os inimigos internos e anulados o cerco e os ataques dos inimigos externos, a Revolução Soviética consolidou-se como a primeira revolução socialista resultante das contradições no seio do capitalismo.
Falar da Revolução de Outubro é tomar consciência de que não pode haver revolução vitoriosa sem um partido dirigente, armado de uma sólida teoria revolucionária, profundamente enraizado nos trabalhadores e no povo, capaz de mobilizar e organizar as forças revolucionárias, capaz de adequar a luta às condições e às experiências concretas de cada povo, capaz de fazer avançar o movimento revolucionário onde e quando as contradições do capitalismo são mais agudas, onde e quando as forças da burguesia se apresentam mais fracas e mais vulneráveis.
Falar da Revolução de Outubro é valorizar a onda de entusiasmo revolucionário e de solidariedade ativa que animou as lutas operárias em toda a Europa, confirmando, aliás, os receios de muitos responsáveis políticos burgueses da época. Numa carta que dirigiu a Clemenceau e a Woodrow Wilson, Lloyd George advertia (25.3.1919):
“Toda a Europa está imbuída do espírito da Revolução. Existe um sentimento profundo não só de insatisfação mas também de raiva e indignação entre os operários em relação às condições existentes antes da guerra. Toda a ordem vigente, nos seus aspetos políticos, sociais e económicos, está a ser posta em causa pela massa da população de um extremo ao outro da Europa.”
Na Alemanha, a ala esquerda do Partido Social-Democrata Alemão – liderada por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo – opôs-se à Direção do partido, quando este votou a participação na Guerra e resolveu abandonar o princípio da luta de classes. Aproveitando o apoio dos trabalhadores alemães à revolução soviética, o Grupo Spartakus procurou mobilizar a população contra a Guerra e contra os partidos que a tinham apoiado, e lutou pela implantação do socialismo na Alemanha, com base na instauração da ditadura do proletariado.
Dominada em 1919 a tentativa revolucionária e assassinados Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, o movimento revolucionário sofreu, na Alemanha, um rude golpe. Mas ficou de pé o Partido Comunista Alemão (criado em 1918) e as forças da burguesia tiveram de aceitar uma solução de compromisso configurada na Constituição de Weimar, que vigorou até à tomada do poder pelos nazis.
Também na Hungria ocorreu, no imediato após-guerra, uma tentativa de implantação de um estado socialista de tipo soviético. A República foi aqui proclamada em novembro de 1918. Em março de 1919, perante a amputação do território imposta pelos Aliados, o governo demitiu-se. Num período em que as dificuldades económicas favoreciam a adesão ao ideário comunista, o povo impôs a República Soviética Húngara, que duraria apenas 133 dias, sob a liderança de Bela Kun. Os contra-revolucionários recuperaram posições e confiaram a regência ao Arquiduque José, que iniciou um período de violenta repressão.
Na Itália, os operários das indústrias metalúrgicas, culminando o período de reivindicações que se arrastou pelos anos 1919-1920 (o famoso biennio rosso), ocupam as fábricas e começam a eleger conselhos operários, à semelhança dos sovietes russos. Em janeiro de 1921, no Congresso de Liorne do Partido Socialista, os comunistas, liderados por Antonio Gramsci e Palmiro Togliati, separam-se dos socialistas e criam o Partido Comunista Italiano.
A vaga revolucionária inspirada na revolução soviética estendeu-se a outros países europeus. Fracassadas estas tentativas revolucionárias, em alguns países foram implantados regimes de tipo fascista: Itália,1922; Bulgária, 1923; Espanha (Gen. Primo de Rivera), 1923; Albânia, 1925; Polónia (Pilsudski), 1926.
As grandes ações de massas registadas em vários países da Europa de apoio aos trabalhadores russos e ao Poder Soviético não foram suficientes para fazer vingar a revolução nos países do capitalismo avançado, mas foram decisivas para impor o armistício ao imperialismo alemão (11.11.1918) e para evitar uma intervenção estrangeira concertada na Rússia revolucionária, permitindo assim que o Poder Soviético se pudesse reforçar e derrotar militarmente a contra-revolução interna.
Entre a herança deste período marcado pela vitória da Revolução de Outubro deve registar-se o facto de, por essa altura, se terem constituído, na Alemanha e em outros países da Europa (entre os quais Portugal) vários partidos comunistas que viriam a assumir como matriz teórica o marxismo-leninismo.
● Falar da Revolução de Outubro é valorizar a decisão tomada em 1928 pelo Governo Soviético de coletivizar a agricultura e acelerar a industrialização, com prioridade à indústria pesada (sacrificando o consumo de toda a população e não apenas o dos trabalhadores), lançando os famosos planos quinquenais, para mobilizar e organizar, em favor do investimento na indústria, a poupança interna gerada na agricultura.
Nesse mesmo ano, gorada a expectativa que animara os dirigentes revolucionários de que a revolução socialista se iria generalizar a toda a Europa, o Comité Executivo da Internacional Comunista veio reconhecer a “relativa estabilidade do capitalismo” e proclamar o objetivo de construir o “socialismo em um só país.”
● Falar da Revolução de Outubro é sublinhar que ela constituiu a prova indesmentível de que os homens podem comandar e dirigir racionalmente os mecanismos económicos e podem decidir conscientemente o seu destino coletivo.
A Grande Depressão dos anos 1929-1933 chegou a ameaçar de morte o capitalismo: “os bancos estavam fechados e gente de bem vendia maçãs na rua”, escreveu Averell Harriman. “Em 1932 – reconhece Truman nas suas Memórias – o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo norte-americano adotasse um outro sistema.”
Apesar disso, os mais insignes expoentes da ciência económica académica dos países capitalistas teimavam em “demonstrar cientificamente” que o socialismo não tinha viabilidade económica, uma vez que, não existindo mercado (sobretudo um mercado de bens de produção), seria impossível o cálculo económico, isto é, seria impossível conseguir a racionalidade das decisões económicas, nomeadamente aquelas que respeitam à afetação racional dos recursos disponíveis. Pois bem. Por esta altura, o Primeiro Plano Quinquenal, apesar de executado em condições particularmente adversas, veio provar as vantagens da planificação socialista como instrumento de acumulação do capital e de promoção acelerada do desenvolvimento económico e social.
Falar da Revolução de Outubro é enaltecer o heroísmo dos povos da URSS, que deram a contribuição decisiva para a derrota da barbárie nazi-fascista, ao preço de mais de 25 milhões de mortos (cerca de 16 milhões de civis), sacrificados em defesa da Pátria Socialista. É recordar com respeito, comovidamente, todos os que resistiram (durante 900 dias!) ao cerco de Leninegrado pelas tropas nazis, em especial os 700 mil mortos na cidade-berço da Revolução de Outubro, durante aquele que é um dos momentos mais dramáticos e mais sublimes da História da luta dos povos pela sua dignidade. É ainda recordar a batalha de Estalinegrado, talvez o momento de viragem na sorte da guerra, abrindo caminho à marcha vitoriosa e libertadora do Exército Vermelho, acossando e neutralizando as tropas nazis, até à tomada de Berlim.
Falar da Revolução de Outubro é assumir o dever de contrariar o discurso dos que, há dezenas de anos, vêm lutando para ‘matar’ o socialismo como alternativa ao capitalismo.
Vitoriosa num país altamente empobrecido pela 1ª Guerra Mundial, e depois desgastado pela guerra civil, duramente atingido pela ocupação nazi, pela destruição e pela sangria provocadas pela 2ª Guerra Mundial, a Revolução de Outubro transformou o império czarista (com mais de 95% de analfabetos em 1917 e onde a servidão continuava em vigor, apesar de abolida em 1861) na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, um país que, no final da 2ª Guerra Mundial, emergiu como a segunda superpotência mundial, um país onde deixou de haver desemprego, um país que assegurava a todos os seus cidadãos um nível razoável de satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais, um país que erradicou o analfabetismo e fez do seu povo um dos povos mais cultos do mundo.
No final da Guerra, graças à influência e ao apoio da URSS, instauram-se regimes socialistas de democracia popular em vários países do centro e do leste da Europa e na China.
Os movimentos pró-independência dos territórios coloniais começaram a manifestar-se: logo em novembro/1945, a Indonésia proclamou a independência; em 1955 teve lugar a Conferência de Bandoeng, na qual se discutiram – com a participação destacada da URSS e da República Popular da China – as vias para a descolonização dos povos colonizados. Nos anos seguintes, o processo de independência das colónias foi avançando, muitas vezes após guerras particularmente bárbaras impostas pelas potências colonizadoras (as ‘exemplares’ democracias da civilização cristã e ocidental). Os últimos e importantes episódios de liquidação dos impérios coloniais foram a independência das colónias portuguesas em África (1974/1975), a derrota do imperialismo americano no Vietnam e a unificação do país, integrado na comunidade socialista mundial (1975) e a derrota do apartheid na África do Sul, com a subida ao poder do Congresso Nacional Africano (Abril de 1994).
Foi decisivo o empenho da URSS no apoio à luta dos povos pela sua emancipação do jugo colonial. A coerência revolucionária dos povos da União Soviética, que aceitaram sacrificar o seu próprio bem-estar para cumprir exemplarmente os seus deveres internacionalistas, é, sem dúvida, um fruto da sementeira da Revolução de Outubro, que, também por isso, marcou a História do mundo durante todo o século XX, condicionando a evolução do capitalismo e a marcha da Humanidade rumo a um futuro que há-de pôr fim a todas as formas de dominação e de exploração do homem pelo homem.
Forçada pelos antigos aliados (agora inimigos encarniçados da expansão do comunismo) a embarcar na corrida aos armamentos, a URSS testou com êxito a bomba atómica (novembro/1949), quebrando o monopólio dos EUA. Numa acção pioneira, a URSS lançou para o espaço o primeiro míssil balístico intercontinental (agosto/1957) e, em 4 de outubro de 1957 (apenas 40 anos depois da Revolução!), colocou em órbita o primeiro satélite artificial (o famoso Sputnik). Em 12.4.1961, Iuri Gagárine foi o primeiro homem a voar no espaço extraterrestre. Ninguém podia contestar: a Pátria do Socialismo estava na vanguarda do conhecimento científico, nos domínios da matemática, da física, da informática, da eletrónica, das telecomunicações, da biologia, as bases da indústria aero-espacial e do domínio do espaço.
Sobretudo após a implosão da URSS, os adversários e os inimigos de sempre do socialismo vêm insistindo na tese de que o socialismo é uma experiência histórica falhada. Como se fosse legítima uma conclusão tão definitiva sobre uma experiência que durou escassos setenta anos (brevíssimos segundos à escala da História da Humanidade, e muito pouco tempo se comparado com os séculos que demorou o desmoronamento da ordem feudal).
Seria absurdo negar que houve erros e fracassos – alguns graves – ao longo dos escassos setenta anos da experiência socialista, tão cheios de obstáculos e dificuldades, algumas internas, muitas outras impostas a partir do exterior.
Alguns teimam mesmo em falar dos crimes do socialismo. Não temos que recear este tipo de pseudo-argumentação. O capitalismo perde por muitos nesta dramática contabilidade dos crimes. Não precisamos sequer de ir buscar os crimes do capitalismo cometidos durante o longo período histórico da “acumulação primitiva do capital”, os crimes do colonialismo e da escravatura. Nem vamos invocar os crimes cometidos contra os trabalhadores e as suas organizações durante os primeiros tempos da Revolução Industrial (muitos autores da época defenderam que os “escravos brancos” das cidades industriais sofreram muito mais do que os escravos negros das Américas).
Basta recordar os crimes do capitalismo durante o curto período da experiência socialista iniciada com a Revolução de Outubro: as duas guerras mundiais ocorridas no século XX e os crimes do nazi-fascismo; o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaqui; os crimes do apartheid; os crimes hediondos cometidos pelo imperialismo durante a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnam; os criminosos massacres de milhões de cidadãos na Indonésia, após o golpe encomendado, preparado, comandado e acompanhado de perto pelo governo dos EUA; os crimes de Marcos nas Filipinas, os crimes de Mobutu, os crimes de Somoza, de Pinochet e dos muitos sanguinários regimes militares ‘semeados’ pela CIA em toda a América Latina (e na Europa, com os coronéis gregos, para já não falar dos crimes de Franco e de Salazar); os crimes cometidos contra os povos colonizados que lutavam pela independência; a espoliação dos povos de África e da América Latina; a humilhação de décadas infligida ao povo palestiniano (cujo território está ocupado por Israel há 50 anos, contra variadíssimas decisões da ONU); o bloqueio dos EUA a Cuba, sempre condenado na ONU e em outras instâncias internacionais; o bloqueio e a guerra que mataram centenas de milhares de iraquianos e destruiram o Iraque, a pretexto de derrubar um ditador (antigo homem de mão do imperialismo, agora falsamente acusado, pelos seus antigos municiadores, de possuir armas de destruição maciça); o ataque e destruição da Líbia, com o objetivo de ‘confiscar’ o seu petróleo, como no caso do Iraque; a guerra civil imposta ao povo sírio, com as centenas de milhares de mortos e os milhões de refugiados que provocou e continua a provocar; os crimes do chamado terrorismo internacional, cujas organizações (desde os taliban, inventados, educados, armados e treinados para combater a presença soviética na Afeganistão) foram e são criadas, armadas, treinadas e financiadas pelas chamadas democracias ocidentais e pelos ‘democratas’ árabes seus amigos e aliados.
Sem esquecer os crimes de última geração, impostos pelas políticas de austeridade: políticas que exigem às suas vítimas “sacrifícios humanos em honra de deuses invisíveis” (Paul Krugman); que constituem pecados contra a dignidade dos povos (disse-o J.-C. Juncker); que vêm sujeitando os povos do sul da Europa a “perdas de soberania e a ofensas à sua dignidade nacional”, oferecendo-lhes, como destino incerto, “na melhor das hipóteses, federalismo; na pior das hipóteses, neocolonialismo” (Ulrich Beck).
Estes – ninguém o pode negar – são crimes do capitalismo, um sistema que hoje se apresenta, ostensivamente, como o capitalismo do crime sistémico, no qual os donos do “dinheiro organizado”, responsáveis pelo “crime organizado”, não são apenas demasiado grandes para falir (too big to fail), são também demasiado grandes para ir para a cadeia (too big to jail). Quem o diz é o insuspeito The Economist.
Pois bem. Cabe-nos a nós, os que acreditamos que vale a pena lutar para transformar o mundo e que pensamos que o socialismo é o futuro do mundo, mostrar que a tese da experiência falhada do socialismo não tem qualquer fundamento sério.
Num referendo realizado em março/1991 (cerca de 8 meses antes da dissolução da URSS) mais de ¾ dos cidadãos votaram a favor da manutenção da União. Quase 25 anos passados sobre o fim da URSS, não deixa de ser significativo que, em um inquérito levado a cabo pelo ‘insuspeito’ Instituto Gallup em onze das Repúblicas da antiga União Soviética, 51% dos inquiridos (66% em algumas Repúblicas) tenham declarado ter sido negativo o desaparecimento da URSS: no conjunto, só 24% dos inquiridos valorizam positivamente este desaparecimento, mas em algumas Repúblicas esta percentagem fica-se pelos 12%. (Avante!, 31.12.2013).
Deixem-me citar aqui o testemunho de um autor tão comedido como o trabalhista inglês G. H. Cole, que faz esta apreciação da Revolução de Outubro: “estou seguro de que a revolução russa atuou como uma enorme força de libertação. Se reprimiu a livre expressão e a liberdade política, libertou simultaneamente um maior número de russos da brutal repressão económica e social do antigo regime e criou uma classe de trabalhadores não apenas mais capacitada e qualificada para o uso das máquinas, mas também com oportunidades culturais e intelectuais muito maiores. O facto de estes resultados serem manchados pelo abuso do poder político não lhes tira valor. Há outras tiranias e opressões para além da tirania política e há liberdades diferentes das liberdades democrático-liberais justamente valorizadas nos países ocidentais. Não é fácil conseguir o equilíbrio entre o bem e o mal; mas, em todo o caso, não tenho dúvida nenhuma de que o balanço, a longo prazo, será favorável.” (G. D. H. Cole, ob. cit., Vol. VI, 301/302)
Ainda nos anos 1970, o socialismo tinha tantos créditos e o capitalismo estava tão desacreditado que muitos foram os que, no campo da social-democracia, se empenharam em desenvolver a chamada tese da convergência dos sistemas, com a qual pretendiam demonstrar que já não valia a pena combater o “capitalismo ocidental”, porque ele já não era capitalismo, tendo-se transformado num sistema misto, mais próximo do socialismo do que do capitalismo, um sistema que tinha absorvido elementos de socialismo, reunindo em si o melhor do capitalismo e o melhor do socialismo. Na sequência de Kautsky e de Bernstein, defendia-se que o estado social (fruto da “revolução keynesiana”) tinha esvaziado de sentido a luta pelo socialismo como alternativa ao capitalismo (que a democratização do capital e a revolução dos gerentes tinham ajudado a ‘dissolver’).
A História mostra que a razão está do nosso lado. Temos de saber fazê-la vingar.
Pois bem. A consciência disto mesmo obriga-nos a todos a não calar os argumentos que nos permitem mostrar que a tese da experiência falhada do socialismo não tem qualquer fundamento sério. A URSS implodiu, é verdade (não é este o momento para analisar as causas desta implosão), mas uma coisa é certa: assim como o capitalismo não é o fim da história (Marx ironizou com Ricardo: “Houve História, mas já não há…”), assim também a implosão da URSS e o desaparecimento da comunidade socialista europeia não significam o fim do socialismo.
O processo de desagregação da ordem capitalista não é um processo linear, de vitória em vitória até à chegada ao ‘paraíso’. É um processo complexo, feito de vitórias e de derrotas, de avanços e de recuos, como é próprio da marcha evolutiva das sociedades cuja dinâmica é ditada pela luta de classes. A derrota da primeira experiência socialista na História da Humanidade não põe em causa as leis de movimento das sociedades humanas, que hão-de provocar a passagem do capitalismo a uma sociedade que supere as suas contradições, e não anula as virtudes do socialismo como sistema económico e social alternativo ao capitalismo.
Nos dias de hoje, o capitalismo dominado pelo capital financeiro vem gerando crises cada vez mais frequentes e cada vez mais difíceis de ultrapassar, indispensáveis para destruir o capital em excesso perante a escassez da procura global. Por outro lado, a ditadura do grande capital financeiro recorre ao crime sistémico para salvaguardar as rendas parasitas de que se alimenta. São rendas de tipo feudal, que traduzem a crescente exploração dos trabalhadores, na tentativa de contrariar a tendência para a baixa da taxa média de lucro nos sectores produtivos.
Esta situação de crise permanente não pode manter-se por muito tempo. E o crime sistémico (que hoje constitui a essência do capitalismo) não pode continuar impune indefinidamente. Após um longo período de degradação, o feudalismo medieval acabou por ceder o seu lugar à nova sociedade capitalista quando as relações de produção, assentes na propriedade feudal da terra e na servidão pessoal, deixaram de poder assegurar as rendas, os privilégios e o estatuto dos senhores feudais, que já não tinham mais margem para novas exigências aos trabalhadores servos. Pode acontecer que estas crises recorrentes do capitalismo e esta fúria de tentar resolvê-las, com tanta violência, à custa dos salários, dos direitos e da dignidade dos trabalhadores sejam o prenúncio de que as atuais estruturas capitalistas já não conseguem, nos quadros da vida democrática, garantir as ‘rendas’ e o estatuto das classes dominantes.
A realidade dos nossos dias confirma a razão de Eric Hobsbawm: “O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto externamente como internamente, de que chegámos a um ponto de crise histórica. (…) O nosso mundo corre o risco de explosão e de implosão. Tem de mudar.”
Por força das leis de movimento do próprio capitalismo e por força da luta de classes, hoje mais evidente do que nunca, o socialismo é o futuro do mundo. E a Revolução de Outubro foi a sementeira deste futuro.
* o orador escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico