centenario | O movimento operário português no tempo da Revolução de Outubro

Intervenção de Joana Pereira

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Intervenção de Joana Pereira

Sumário: Os últimos anos da Primeira Guerra Mundial e os primeiros do pós-guerra foram marcados por um ciclo de agitação social global. Os países beligerantes, como todos os contextos nacionais afetados pela desestabilização da economia, foram palco de levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida e de uma onda de greves com uma adesão inédita, na qual se integra a Revolução de Outubro, cujo efeito catalisador foi fundamental para a escala e natureza do movimento.

Nesta comunicação, vou procurar caracterizar a expressão do processo em Portugal, começando por muito sucintamente enquadrá-lo no âmbito das transformações estruturais que o determinaram – os processos de industrialização, urbanização e construção do Estado Moderno – e terminando por destacar os mais significativos resultados de um processo profundamente marcado pelo exemplo da tomada do poder pelo partido bolchevique: a emergência de um movimento operário articulado à escala nacional e altamente politizado, em que a fundação do nosso Partido é sintomática.

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No final do século XIX, um multifacetado conjunto de transformações estruturais afeta significativamente o trabalho manufatureiro e as economias domésticas, mesmo nos países de industrialização tardia. Mais do que a mecanização, uma nova distribuição de tarefas tornou possível empregar um grande número de trabalhadores não qualificados, sobretudo mulheres e crianças, que passaram a coexistir com os artesãos secularmente organizados. Este processo foi acompanhado de uma nova divisão social do espaço dentro das aglomerações urbanas europeias, induzindo a formação de bairros socialmente mais homogéneos em torno de áreas industriais. As famílias trabalhadoras, incluindo artesãos, trabalhadores qualificados e indiferenciados, coexistiram desde então em espaços de produção e residência, que se sobrepunham, promovendo uma endogamia social sem precedentes.

Desta forma, no alvorecer do século XX, o movimento operário assumiu novas proporções e contou com novos protagonistas – o proletariado fabril. As mulheres desempenharam um papel fundamental e inédito nos protestos laborais, tendo em conta a sua entrada nas fábricas, mas também o seu papel na economia familiar. Foi  nas lutas em torno do consumo que estas mais se destacaram como gestoras de redes de solidariedade informais que permitiram uma mobilização massiva das populações.

As designadas food riots contra o açambarcamento e a especulação sobre os preços dos géneros de primeira necessidade assolaram toda a Europa desde o Inverno de 1915-1916. Mas foi a partir de 1917 que estes protestos tomaram uma dimensão política, quando começaram a articular-se com um novo surto de conflitos laborais. Os protestos e greves verificados após a Revolução de Outubro culminaram num ciclo de agitação social global. Os parâmetros quantitativos refletem o surgimento deste movimento numa escala mundial, abrangendo todos os continentes. Mostram também que, na maioria dos países, o número de greves foi ultrapassado em comparação com a onda desenvolvida antes da guerra (1910-1913), bem como o número de grevistas, o âmbito das greves, a coesão e a força do movimento.

Ainda antes da vitória bolchevique, a crescente intervenção económica e social do Estado foi percecionada coletivamente pelos trabalhadores como uma oportunidade para lutar por condições de vida e trabalho mais favoráveis. A economia de guerra serviu para enfatizar as contradições fundamentais do sistema capitalista e da economia de mercado, destacando os instrumentos políticos passíveis de utilizar para impedir a especulação e o açambarcamentos.

Um exame minucioso dos protestos relacionados com o consumo em Portugal sugere que estes não se traduzem em explosões súbitas e espontâneas de raiva e desespero. A resistência das populações contra a especulação e o açambarcamento integra um movimento com várias formas de luta – sessões de propaganda, comícios, representações ao governo, manifestações, greves, entre outros –, o que poderia ser classificado como um reportório de ação coletiva centrado no Estado. Na maioria das vezes, e tendo em conta os relatórios da polícia, os manifestantes insurgiram-se contra as tentativas dos comerciantes de venderem produtos acima dos preços oficiais ou a sua recusa em vender bens essenciais armazenados. Em muitos desses testemunhos, afirma-se que os bens foram pagos de acordo com os preços oficiais prescritos, e que não houve violência física significativa.

Vários exemplos de relatórios policiais e das autoridades locais ilustram como as reivindicações dos trabalhadores e das populações criaram divisões no seio do Estado.  As autoridades locais e regionais mostraram uma tendência geral para rejeitar as diretrizes do governo central, cedendo à pressão das populações. Numerosas ameaças e demissões coletivas dos administradores e governadores aparecem na correspondência trocada entre poderes locais, regionais e centrais. A razão era invariavelmente a mesma: as subsistências.

À medida que esta questão se agravava, as tensões institucionais transbordavam para o domínio público. Vários exemplos de desafio frontal de ordens superiores por parte das autoridades locais, no interesse das comunidades, foram identificadas nas séries de correspondência do Ministério do Interior. O mesmo sucedeu no que se refere às autoridades policiais. Está bem documentada a participação da polícia civil na revolta mais dramática que ocorreu na região de Lisboa, a revolução da batata, em Maio de 1917, bem como a recusa por parte dos militares em reprimir alguns dos assaltos a padarias e mercearias durante esse levantamento popular. A descrição de um destes episódios, no Poço do Bispo, é eloquente. Segundo o relatório policial, os guardas-fiscais não impediram o furto de bens alimentares pelas mulheres, que gritavam, «a Guarda está ao lado do povo!».

Estas revoltas populares estiveram na origem de um novo ciclo de lutas laborais. Na verdade, a paralisação da construção civil que precipita a maior onda de greves até então experimentada em Portugal, ocorreu exatamente no curso da revolução da batata. A federação nacional dos trabalhadores da construção civil, que liderou o movimento, organizou uma manifestação no centro de Lisboa, no mesmo dia em que os tumultos atingiram o seu clímax. Depois disso, durante a Primavera de 1917, as greves sectoriais e gerais agitaram toda a região, em paralelo com novos levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida. Este ciclo de protestos intensificou-se durante o Verão, culminando com a paralisação dos serviços de telégrafos e postais, uma das primeiras greves a generalizar-se em todo o País, desde o Algarve até Bragança, segundo a correspondência dos governos civis para o Ministério do Interior, e que terminou com a mobilização militar dos grevistas.

Neste processo, quer as organizações de trabalhadores quer as redes informais foram apropriadas pelos sindicalistas revolucionários para transformar os motins e as greves num movimento político único. Diversas fontes, desde os relatórios policiais à imprensa, relatam como o movimento organizado dos trabalhadores participou nos levantamentos populares, aparentemente espontâneos. De acordo com estas, os assaltos e tumultos eram planeados nas sedes das associações operárias, como as sociedades de socorros mútuos, as cooperativas e até mesmo as coletividades de cultura e recreio, espaços de agregação fundamentais nas comunidades operárias.

Por outro lado, festas, festivais, performances e subscrições realizadas em bairros operários permitiram sustentar lutas extensas e prolongadas. A propagação da agitação social deu origem à reorganização do movimento operário, que nos primeiros anos da guerra foi amordaçado pela repressão, mas também levou a uma mudança na sua tática. A União Operária Nacional (UON) conseguiu construir um movimento de contestação à escala nacional, dando-lhe um carácter político, através da apresentação ao governo de um conjunto de exigências, que foram aprovadas em dezenas de comícios em todo o país. Era exigido ao Estado a regulamentação legal do trabalho das mulheres e crianças, o dia de oito horas, entre outras regulamentações laborais, ao mesmo tempo que se propunha a utilização dos terrenos incultos pelos sindicatos rurais ou a municipalização urgente dos serviços de viação, águas, gás, eletricidade, etc... Inequivocamente a ideia de um estado proletário, não obstante a hegemonia anarco-sindicalista do movimento, começava a ganhar forma graças à vitória da revolução russa.

Na preparação da greve geral de 1918 foram organizadas muitas centenas de iniciativas: Com este programa como base, comícios, reuniões, protestos e distribuições de manifestos nas principais cidades e centros industriais – Lisboa, Porto, Coimbra, Viana do Castelo, Guimarães, Covilhã, Faro, Funchal, etc. –, e profusamente entre os trabalhadores rurais – em Évora, Beja, Portalegre, Sousel, Estremoz, Ferreira do Alentejo, Coruche, Aljustrel, Redondo, Sines, etc. O resultado decepcionante da greve geral, para o qual contribuíram o armistício e a pneumónica, não minimiza a importância do movimento.

Durante 1919 e 1920, as duas principais cidades e suas áreas de dependência foram novamente abaladas por amplos movimentos grevistas, que se transformaram sistematicamente em paralisações generalizadas, tendo a solidariedade como mote. Os protestos multiplicaram-se e intensificaram-se de Norte a Sul do País, resultando em vitórias muito significativas. Os trabalhadores da cortiça, por exemplo, conquistaram a jornada de trabalho de oito horas e um aumento salarial de 40%. As lutas dos ferroviários foram particularmente dramáticas devido à sua abrangência, impacto e duração e também por causa dos meios de repressão implementadas pelo governo.

A articulação entre a ação coletiva conduzida pelas associações de classe e a luta das populações contra a especulação e os açambarcamentos é evidente à escala local, onde são criadas formas de luta híbridas, como greves gerais locais contra os açambarcamentos, a apreensão e distribuição de géneros pelas associações de classe, entre outros. Também é verificável, em estudos monográficos, que durante estes movimentos os sindicatos expandem a sua influência entre as comunidades operárias, possibilitando uma participação sem precedentes do proletariado fabril, e especialmente das mulheres.

A articulação e radicalização das lutas populares com as dos trabalhadores organizados justificam os rótulos atribuídos ao período pós-guerra em diferentes países: o biénio rosso em Itália ou os chamados anos da ameaça vermelha em Portugal. Em paralelo com a ampliação do processo de mobilização, foi a sua politização que assustou as elites. Na comemoração do Dia dos Trabalhadores, em 1919, o âmbito geográfico da mobilização ampliou-se. Ainda mais manifestações do que em 1918 tiveram lugar por todo o País, em comunidades operárias em meio urbano e entre os trabalhadores rurais, com o mote dominante da luta contra a carestia de vida.

Em Lisboa, a União Operária Nacional mobilizou 30.000 pessoas, uma manifestação monumental para a época, exigindo a «socialização gradual e progressiva da terra e da indústria». Em todos os bairros e vilas operários, os comícios terminavam com vivas aos trabalhadores de todo o mundo e à Revolução Russa.

Concluindo, entre 1917 e 1920, as tendências de longo termo que transformavam o mundo do trabalho industrial e o movimento operário foram extraordinariamente aceleradas e reforçadas devido à conjuntura excecional da Primeira Guerra Mundial e ao impacto da Revolução Russa. A União Operária Nacional conseguiu estruturar um movimento nacional a partir de levantamentos de carácter local, organizados por redes sociais informais e associações comunitárias. A ala mais radical do movimento operário – o sindicalismo revolucionário – foi capaz de disseminar os protestos por todo o País, dando-lhe um caráter translocal e político, podendo-se concluir que a dinâmica de conflito induzida pelos efeitos económicos e sociais da grande Guerra e potenciada pela vitória bolchevique teve um papel crucial no alargamento, estruturação nacional e politização generalizada do movimento operário português.

Não obstante o profundo debate ideológico que marcou este período, no qual anarquistas e maximalistas como então se auto-designaram os defensores dos postulados leninistas (ainda mal conhecidos e compreendidos), os dirigentes operários não deixaram de defender a grande conquista da classe operária, e cito: “bem pelo contrário seguimos atentamente a marcha do movimento e procuramos assimilar os ensinamentos que dela resultam e apoiaremos sempre a Revolução contra os ataques da Internacional negra do capitalismo e do militarismo.» (BATALHA, FEVEREIRO DE 1919)